Vídeo de 'traficantes’ pedindo proteção mostram conversão a fé evangélica
Na semana passada, um vídeo que circulou pelo Twitter e que depois ganhou as páginas dos noticiários, trouxe à tona um debate relativo a uma realidade que vem sendo observada por pesquisadores das ciências humanas e jornalistas. Pesquisas acadêmicas vem abordando as trajetórias de membros de facções criminosas que se convertem a fé evangélica pentecostal sem abandonar a caminhada no "mundo do crime". Casos como esses não são excepcionais. Pelo contrário, apontam para a intersecção entre o crescimento pentecostal identificado nas periferias das grandes cidades nas últimas décadas e a consolidação da ética do crime.
No caso específico de São Paulo, tenho acompanhado esse processo de intersecção entre a fé e o crime desde minha pesquisa de mestrado no Programa de Ciências da Religião na PUC-SP, com a elaboração da dissertação: O irmão que virou irmão: rupturas e permanências na conversão de membros do PCC ao pentecostalismo nas periferias de São Paulo, e, consequentemente com a pesquisa de Doutorado em História Social também na PUC-SP, quando defendi a tese As igrejas menores nas quebradas de fé: a construção da hegemonia do pentecostalismo nas periferias de São Paulo - 1990-2010.
Minhas pesquisas de campo se concentram em regiões do extremo leste de São Paulo, com destaque para Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos, Poá, Itaim Paulista e São Miguel Paulista, assim como no extremo oeste, principalmente em Itapevi, Jandira, Barueri e Carapicuíba. Como pano de fundo desse processo de virada da fé nas "quuebradas de fé São Paulo", em que as periferias deixam de ser católicas para serem cada vez mais pentecostais, observei também uma transformação no mundo do crime, com a consolidação do PCC no mundo do cárcere e, consequentemente nas periferia de São Paulo, o trânsito da moralidade do "Partido" para as ruas e as interseções entre a moralidade da fé com a ética do crime. Ou seja, o crescimento pentecostal nas "quebradas" se deu concomitante a esse processo de consolidação do PCC.
No vídeo que viralizou no Twitter, um dos atores solicita ao pastor que este feche o corpo do chefe do tráfico, abençoando-o para a guerra. A esse respeito tenho problematizado em minhas pesquisas sobre como o rap de modo geral captou o movimento de transformação da "quebrada" ocorrido na década desde 1990 até os anos de 2010, período que considerei em minha pesquisa.
Ao analisar a discografia do Racionais MC's e diversos outros grupos de RAP, observei como a representação da "quebrada" presente nas canções trata da prática de "fechar o corpo", elemento presente na música “Fórmula mágica para a paz”, por exemplo.
Entendo que o contexto dessa representação no Rio de Janeiro que viralizou na internet é semelhante aponta para um cenário do "mundo do crime" pulverizado, com a disputa por territórios entre mílicias e facções, semelhante a década de 1990 em São Paulo, onde não havia a regulação ou monopólio no "mundo do crime" e os indicadores de homicídios eram demasiado elevados e a disputa pelo monopólio da violência levou a muitas mortes. Foi esse o contexto da produção do disco Sobrevivendo no Inferno dos Racionais MC's, um cotidiano de guerra.
Tal contexto conflitivo instaura, então, a ideia de se fechar o corpo e buscar proteção para o cotidiano da guerra, desse modo, todas as vezes que esse cenário de guerra se apresentava no contexto da fé, as referências eram alusivas ao imaginário afro-católico, como, por exemplo, na música "Fórmula Mágica da Paz", entretanto, com a ascensão do pentecostalismo nas "quebradas" de São Paulo a partir da década de 1990, identificamos o RAP sinalizar um movimento de virada de fé da "quebrada", isso pode ser percebido nas canções “Qual mentira vou Acreditar” e “Vida loka - parte 1” dos Racionais MC's, ou "Sinal da Cruz" do grupo Realidade Cruel, entre outras. O exemplo de canções como essas indicam a simultaneidade da consolidação do PCC e da ascensão do pentecostalismo, e apresentam como as dinâmicas da fé e do crime coabitam no cotidiano das periferias urbanas de São Paulo.
No meu mestrado eu pesquisei mais especificamente o processo de conversão de pessoas filiadas ao Primeiro Comando da Capital a denominações pentecostais. Meu foco se dirigiu para aqueles membros do PCC que têm um circuito mais sólido no "mundo do crime", sendo os responsáveis pela movimentação de valores mais expressivos e com ordenamentos éticos e morais mais avançados. Não pesquisei a realidade do menino da biqueira, mas a de sujeitos que estão em frentes diversas, sejam lícitas ou ílicitas, desde atuação na administração pública, com o financiamento privado de campanha e consequente atuação em setores da administração com contratos de prestação de serviços, assim como no setor privado, no mercado imobiliário, automotivo, artístico, entre outros. Acompanhei com mais atenção a conversão desses indivíduos a igrejas pentecostais e constatei nos casos pesquisados a falta daquela ruptura convencional do sujeito que sai do crime para entrar na fé. Pelo contrário, observei a situação do sujeito que mantém uma dupla irmandade, isto é, que se converte ao mundo da fé, mas que continua no "mundo do crime", daí o título da dissertação "O irmão que virou irmão" e do livro que publiquei em 2015, entitulado Fé&Crime: evangélicos e PCC nas periferias de São Paulo.
Retornando ao vídeo que viralizou, uma pergunta que me fiz ao longo de minhas pesquisas foi como se dá as intersecções entre esses dois mundos aparentemente antagônicos para o público geral, mas concomitantes para quem vive o cotidiano das favelas do Rio de Janeiro ou das periferias de São Paulo?
O que observei, no caso da minha pesquisa de mestrado e também no doutorado, é que essa intersecção se dá pela combinação de duas identidades, uma relativa ao mundo da fé e outra ao mundo do crime. Embora a cena repercutida pelo vídeo seja uma encenação, ela encena aquilo o que ocorre na realidade, reproduz cenas comuns da vida vivida. Pode ser uma cena estranha para os sujeitos externos, mas não para as pessoas que vivenciam essa transformação referente à fé e ao crime nas quebradas de São Paulo ou nos morros do Rio de Janeiro, tampouco para quem experimenta o convivívio com o cotidiano da guerra. Para esses, a encenação que viralizou é um exemplo de como a arte imita a vida.