Uma nova modalidade de cancelamento
“Quem trai não é o inimigo” (Dercinei Figueiredo)
“Tenho-vos dito estas coisas para que não vos escandalizeis.
Expulsar-vos-ão das sinagogas; ainda mais, vem a hora em que qualquer que vos matar julgará prestar um serviço a Deus.
E isto vos farão, porque não conheceram ao Pai nem a mim” (Palavras de Jesus em João 16:1-3).
Casei-me com uma amiga de infância. No dia 29/01 completamos 27 anos de relacionamento entre namoro, noivado e casamento. Ela flamenguista, eu botafoguense; talvez mais anti-flamengo.
Nunca houve qualquer dificuldade no nosso relacionamento por conta da diferença e do antagonismo dos times de futebol que escolhemos torcer. Apesar de eu ter a esperança de completar seu “discipulado” trazendo-a para o Botafogo, e das inúmeras e mútuas zoações, nunca houve sequer um minuto de problema na relação por conta dessa diferença.
Penso que a relação em torno do espectro político deveria obedecer o mesmo regramento. Nenhum casamento, nenhuma amizade, deveria ser inviabilizado por conta da opção política. Estou falando aqui de gente com um percurso relacional, com uma longa caminhada pela autoestrada das trocas afetivas. No entanto não é isso que tenho observado, nem nas igrejas, nem nos relacionamentos.
Pessoalmente vivo a era do gelo. Meu nome figura em murais eclesiásticos como se estivesse em plena vigência do Velho Oeste americano com seus cartazes de “Procura-se”. Meus amigos, ah... boa parte segue saindo de fininho... Alguns por sentido de autopreservação; outros por vergonha mesmo. Vergonha do amigo... lembro de tantas vezes e ocasiões em que fui um dos poucos (quando não o único) a me colocar em favor daqueles que foram desprezados por conta de uma falha moral...
Penso que o legado bolsonarista desfigurou o conceito de vergonha. Vergonha sem substância, sem violação ética, sem razão para ser, não pode ser vergonha. Que vergonha poderia existir fruto da minha opinião política num espaço não religioso?. É... a traição, como bem lembra Dercinei Figueiredo (um dos poucos fiéis que restaram), sempre parte de um amigo.
Entretanto, o mais difícil não é o cancelamento atual. A pior parte ainda está por vir. Penso no futuro cumprimento da palavra de Dom Helder Câmara. Ao lembrar um tenente que perseguia um preso político sobre a roda da vida, dizia que os que estão embaixo hoje (como aquele homem que se escondera na Casa Paroquial), podem subir para o topo com um simples movimento de meia volta da roda. Essa hora, em que os “amigos” são granjeados e que tantos outros reaparecem é a que considero mais complicada. Espero ter sabedoria para lidar com isso. Sei também que não estou sozinho nessa questão.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.