Um relato de uma pastora no Julho das Pretas

Um relato de uma pastora no Julho das Pretas

Quando fui convidada a escrever sobre o julho das pretas, pensei no que poderia escrever, pois muito se fala e escreve graças a Deus e as redes sociais. Pensei em compartilhar um pouco da minha experiência nas igrejas e na vida.


Vi e vivi muitas coisas como mulher negra e evangélica . Minha infância foi na igreja, na escola dominical, nos cultos e estudos bíblicos das casas de senhoras. Minha amada e saudosa mãe Esther amava a igreja e amava fazer parte daquele lugar que ajudou a construir com sua família. Ela aprendeu a amar, porque seus pais criaram todos os filhos e filhas na igreja. Um lugar seguro, onde acreditavam estar longe das coisas ruins da vida como a violência, racismo e onde todas as pessoas são consideradas irmãos e irmãs.


Cresci frequentando a Igreja Metodista da Luz, acreditando que aquele era o lugar ideal e que era totalmente feliz. Aos 9 anos, pedi para o pastor da igreja que queria fazer profissão de fé pois também queria ter voz no concílio da igreja e ser considerada membra atuante. Pastor Ronaldo Sathler Rosa contou que ficou espantado com minha atitude, pois fui até o gabinete pastoral com minha irmã mais nova. Na época, a Ester tinha 8 anos. Cheguei e perguntei se poderia fazer a classe de catecúmenos, pois queria... Não! Eu disse que gostaria de ser membra da igreja. O pastor respondeu que iria falar com minha mãe. E isso feito, ela ficou surpresa, pois até aquele momento, ela não sabia de minhas intenções.


O Pastor Ronaldo aconselhou minha mãe a deixar e não cortar meu desejo de participar ativamente na igreja. Sendo assim, aos 9 anos fiz a profissão de fé, usando um lindo vestido que minha mãe fez para mim e minha irmã. Fiquei muito feliz e orgulhosa, pois a partir daquele momento, ninguém poderia dizer que eu não poderia dar minha opinião a respeito de algum  assunto.


Acredito que queria ser como minha mãe, atuante, incluída. Minha mãe foi presidente da Sociedade de Mulheres e falava o que pensava e acreditava. Enfrentou uma igreja batista, vizinha a casa que morávamos na Freguesia do Ó, onde participávamos na escola dominical, quando não era possível ir à Igreja Metodista da Luz. Lembro de minha mãe falando com o pastor da igreja e com os membros em uma reunião, porque a professora da escola dominical, havia dito à minha irmã que não poderia ser o anjo na peça de natal: “crianças negras não poderiam fazer o papel de anjo, onde já se viu isso?”, a professora afirmava.

A igreja achou melhor aceitar um anjo negro... e dona Esther costurou uma linda roupa com o vestido de casamento que estava guardando para uma de nós. Lembro dela triste enquanto cortava o vestido. Mas naquele  momento, minha irmã, que também se chama Ester, era mais importante. E quando fossemos casar, ela desejava que o nosso vestido fosse mais bonito do que o dela!


Penso na minha vida pastoral e em todas as mulheres negras que encontrei nas igrejas. Amadas quando eram dóceis, servis, caladas, com um sorriso largo e agradecidas por fazer parte da comunidade e das zeladoras que não tinham dia ou horário para o trabalho na casa de Deus! Que saudades da dona Nadir, zeladora na Igreja da Luz, que deixava a criançada comer o que sobrava da santa ceia escondida. Beber o suco de uva e comer o pão sagrado era uma grande aventura na cozinha da igreja.


Lembro da dona Maria, mãe de um amigo do meu pai, que era católica, mas também era benzedeira. Quando criança, eu tinha bronquite asmática e meu pai levava o filho e as filhas para encontrar dona Maria e sermos benzidas. Minha mãe não achava muito boa aquela mistura de benzer e orar, mas gostava muito da dona Maria. Para  ela, valia tudo para livrar as filhas da doença e de qualquer coisa ruim.  Dona Maria, uma mulher negra bem magrinha e de idade avançada, nos colocava no colo, fazia suas preces e passava em nós umas folhas e rezava . No final, depois das rezas, fazia o sinal da cruz em nossa testa e nos abençoava.


Tenho muitas histórias para contar sobre as pretas, as igrejas, a fé e a dedicação aos pastores e suas famílias. Importante sempre lembrar o quanto essas igrejas como lugares de fé são espaços de salvação na vida das mulheres negras. Para enfrentar a desesperança, a dor do racismo,do preterimento nos amores e trabalhos, das humilhações. É na igreja que somos queridas, nos sentimos pertencentes a alguém e alguma coisa.


E lá podemos cantar e chorar nossas dores. E neste espaço que somos irmãs e que valorizam o quanto damos da nossa vida. Foi nesses espaços que fui a tia das crianças pequenas na escola dominical. Foi lá que crianças me amavam, gostavam de ficar no meu colo e me senti querida e amada por elas. Foi lá que pudemos mostrar nossa liderança, garra e inteligência. Pois vale lembrar que no trabalho doméstico em casas de família, a criatividade e liderança jamais seriam valorizadas. São mulheres negras divorciadas ou que foram abandonadas, solteiras ou avós que carregam tudo sozinhas: os problemas, a falta de dinheiro, os filhos com problemas de drogas, álcool, baixa autoestima, as filhas violentadas sexualmente, as crianças  sem pai e abandonadas. Elas acabam assumindo tudo sozinhas.


Sim, a igreja ainda é um lugar de salvação para muitas de nós! Como diz o cântico gospel norte americano: “ninguém conhece o nosso labutar! Somente Cristo!”.
Deus nos carrega em seus braços. A Ruah divina nos consola e nos toca e renasce sempre a esperança que vamos vencer, vamos chegar lá, vamos subir as montanhas da vida, mesmo quando tudo diga o contrário.
Não adianta condenar as igrejas, acusando-às somente como espaço de alienação. É preciso empatia, entender que nós mulheres negras cristãs só temos a fé e esperança para suportar a morte dos nossos filhos e filhas por balas perdidas e pelas ações do racismo estrutural.


O nosso viver bem e as relações de amizade estão ali na reunião das mulheres organizando o bazar para ajudar a igreja e comprar cestas básicas para as irmãs que não tem o que comer, na reunião das mulheres para visitar uma irmã que está em situação difícil ou aquela que só o pastor e algumas mulheres da igreja sabem o que ela está passando. É a mulher que pega a bíblia e vai chorar junto com aquela que está sofrendo.


Nosso trabalho enquanto teólogas e pastoras é também com estas mulheres. Juntas, descobrimos que existe alguém que nos ama, mas que não quer que aceitemos as humilhações, mesmo constantemente ouvindo que sempre foi assim. Temos que pregar a vida em abundância e plenitude e que o amor é para todas as pessoas, independente do gênero. Temos que pregar que acreditamos que Deus tudo criou e que também criou os desejos. E que nós mulheres  não precisamos sofrer porque o filho ou a filha é LGBTQIAPN+. Temos que pregar que a irmã não precisa ‘aceitar’ o sexo sem vontade com o marido e que ela não pode abaixar a cabeça para as humilhações por ser negra. Ela tem que acreditar que existe um Deus, um Jesus acolhedor, que ama as pessoas e não deseja a morte de seus filhos e filhas em qualquer hipótese.


Precisamos compartilhar nossas vidas também com elas, para que vejam o quanto somos felizes e abençoadas com nossas escolhas em servir e a seguir a Jesus.  Que também, muitas vezes, pagamos caro, mas que a liberdade e medo são sentimentos trabalhados constantemente.


Quero terminar agradecendo as minhas ancestrais que lutaram por espaços nas igrejas - espaços de amor e solidariedade. Sempre nos quiseram em lugares pequenos e sem voz, mas somos resistência e existência Quero agradecer por minha mãe que lutou por mudanças na igreja e que participou, com o Reverendo Antônio Olimpio de Santan’a, de encontros do CENACORA, pra falar sobre racismo. Agradeço também minhas tias, mãe e primos, que tinham orgulho de cantar no coral dos negros evangélicos. Quero agradecer ao amor da tia Judith pela igreja, por tocar o órgão e cantar seus hinos preferidos depois do culto, sozinha no quarto. Quero agradecer a Nilceia que amava cantar na igreja e tocar o órgão ou o piano pois  para ela, eu sabia, estar ali era sagrado. Era prova de sua dedicação a Deus.


Quero agradecer a tia Ruth, sempre disposta e pontual para o trabalho com as crianças da igreja para tudo que fosse possível. Quero agradecer a Dina da Silva Branchini que organizou encontros de mulheres negras cristãs. As minhas amigas Lenir e Laura que sempre acreditaram em nossa amizade como mulheres negras na igreja. Foi o nosso suporte de crescimento espiritual e social. Quero agradecer enfim a todas mulheres e homens que ainda lutam constantemente para viverem da melhor forma nas igrejas evangélicas e lutam por um mundo mais justo e mais fraterno. Obrigada a EIG por ser espaço de ação e salvação no compartilhar da vida, do amor e da solidariedade.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Eliad Dias dos Santos é Mulher EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero) Roma, Presbítera da Igreja Metodista no Brasil, servindo como missionária no trabalho junto às pessoas em situação de rua em Roma - Itália.