Um olhar sobre as diversas formas de ser evangélico
A adesão de setores evangélicos à direita autoritária, especialmente nos últimos anos, gerou uma reação dentro do próprio segmento religioso, provocando, e, de certo modo, intensificando a articulação de ações coletivas com base evangélica e progressista, compostas por atores sociais que circulam nesses dois campos polissêmicos. Identificar-se como “evangélico progressista”, no entanto, não é uma novidade. Magali Cunha, por exemplo, mostra que “as expressões progressistas entre os evangélicos brasileiros são antigas e ganham mais potência a partir dos anos 1930”. Evangélicos também estão na história da resistência à ditadura militar instalada em 1964, conforme demonstrado no livro "As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar: dos abusos de poder à resistência cristã" (Editora Alameda).
O que se observa mais recentemente no campo é a amplificação de um discurso evangélico alinhado com a defesa da democracia e dos direitos humanos, como foco nos direitos sexuais e reprodutivos e das populações LGBTQIA+ e negra, sendo, em muitos casos, os próprios corpos classificados como dissidentes e evangélicos os protagonistas desses processos, como mostram Angélica Tostes ao refletir sobre os “cristãos de margem” e Christina Vital da Cunha ao analisar candidaturas evangélicas de esquerda nas eleições de 2020.
De fato, a face “fundamentalista” e “conservadora” dos evangélicos, até mesmo em alianças com outros atores sociais no forjamento de uma “onda conservadora” na política institucional, como observa Ronaldo Almeida, causam fricções importantes em instituições democráticas e na manutenção e ampliação de direitos. Porém, coesão está longe de ser um termo para definir o cristianismo evangélico brasileiro.
A pluralidade, seja teológica, social, pastoral ou política, é algo inerente ao segmento e é causa de alianças e parcerias, mas também de conflitos, controvérsias e cisões. Levando isso em consideração, torna-se necessário debruçar-se diante de atores sociais que se identificam como evangélicos e que a partir desse lugar social – ou por causa desse lugar –, entram nas disputas dos sentidos de direitos humanos e de sujeitos de direitos desde uma perspectiva sociopolítica “progressista” ou “de esquerda”.
A cartilha “Resistir com fé: evangélicos e trabalho de base”, publicada em fevereiro de 2022 pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, oferece uma definição que ajuda no delineamento do campo: “evangélicos progressistas” são um grupo que “compartilha das pautas progressistas, podendo variar a intensidade a temas sensíveis, linguagem etc”. O texto divide o grupo em duas subcategorias: “a) militantes do movimento social que são evangélicos, mas sua identidade de luta é pela terra, pela moradia etc e b) evangélicos para quem a luta se dá a partir de sua fé, atuação na igreja, pastorais e coletivos religiosos”.
Existem diversos projetos inseridos nesse cenário, incluindo o Novas Narrativas Evangélicas, uma rede de atores e organizações de base evangélica que, apesar de diferenças internas, se classificam como “antifundamentalistas”. Uma das estratégias dessa organização é produzir conteúdos digitais que diversifiquem a ideia do que significa ser evangélico. Além disso, eles também se envolvem na incidência política. Durante as eleições de 2022, por exemplo, o grupo lançou uma agenda evangélica antifundamentalista, que foi assinada por candidatos, incluindo Marina Silva (Rede), eleita deputada federal e atual Ministra do Meio Ambiente, e Henrique Vieira (Psol), pastor batista eleito deputado federal. A defesa dos valores democráticos e dos direitos humanos, a partir de uma perspectiva evangélica progressista, abrange aspectos teológicos, pastorais, sociais e políticos. O termo evangélico, que possui múltiplos significados, está em embate, assim como a própria ideia de uma cultura evangélica no país.
A disputa em torno da cultura evangélica alcançou até mesmo a TV Globo. A novela "Vai na fé", exibida às 19h, tem como protagonista uma família composta apenas por mulheres negras, todas evangélicas. Os capítulos são repletos de louvores e citações bíblicas. O funk e a música pop também marcam presença na novela. Em uma cena, jovens negros citam o pastor Martin Luther King como exemplo de liderança na luta antirracista. O combate ao abuso sexual e uma visão positiva de relações homossexuais também têm espaço nos capítulos da trama. Não se trata de afirmar que a Globo está inserida dentro de um projeto pastoral e político evangélico progressista. O fato é que a novela apresenta formas diferentes de ser evangélico, que vai além do estereótipo “conservador”.
Cabe aos setores democráticos não religiosos da sociedade compreenderem que a radicalização da democracia também deve incluir a perspectiva religiosa e, portanto, é fundamental contar com aliados evangélicos. A preocupação com esse tema deve ultrapassar os períodos eleitorais.
Referências:
ALMEIDA, Ronaldo. A onda quebrada: Evangélicos e conservadorismo no Brasil. Cadernos Pagu, [online], n. 50, 2017. ALMEIDA, Ronaldo. Deus no parlamento: os impedimentos de Dilma. In: ALMEIDA, Ronaldo & TONIOL, Rodrigo (org.). Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos: Análises conjunturais. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, pp. 163-193.
CUNHA, Magali do Nascimento. Política, mídia e religião: O ativismo progressista entre evangélicos brasileiros por meio do Facebook e do Twitter. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, v. 39, n. 3, set./dez. 2017, p. 217-244.
TOSTES, Angelica. Marginais dentro do centro: os evangélicos e o movimento social. Angeliquisses, 2018. Disponível em: https://angeliquisses.wordpress.com/2018/03/29/marginais-dentro-do-centro-os-evangelicos--e-o-movimento-social/. Acesso em: 15 de janeiro de 2019.
VITAL DA CUNHA, Christina. “Irmãos contra o império: evangélicos de esquerda nas eleições 2020 no Brasil”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, n. 39, p. 13-80, jan./jul. 2021.
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