Tolerância religiosa no século XXI: Desafios e necessidade de coexistência
No final do século XIX, na periferia de Londres, mais especificamente no distrito de Whitechapel, um assassino em série matou várias prostitutas usando para tanto de um método: primeiro a degola, para logo depois cortar o abdômen de suas vítimas, expondo suas vísceras. Sua fama, penso, pode ser atribuída a três fatores: a violência com que assassinava tais mulheres; ao método empregado e a sua não captura. Sim, o Jack histórico, esta personalidade que provavelmente misturava misoginia com religiosidade puritana, nunca foi preso.
Ao que tudo indica, parece que alguns Jack’s têm vocação para ser assunto da mídia. Só que agora estripam o outro pela via simbólica, pela trilha mais visceral que o ser humano tem que é a subjetividade da sua fé, da sua crença. Fazendo uso da perfurante palavra, e da conhecida violência, os Jack’s do nosso tempo desenvolveram novo método para uma velha prática: arrancam as vísceras religiosas e deixam-nas expostas na praça pública das redes sociais.
Todavia, o que há de mais aterrador neste movimento é a postura de defesa do direito à violência religiosa que muitos líderes escolhem adotar. Para tais religiosos, o exercício do sacerdócio é lido como salvo-conduto para o vociferamento. Ao invés de se esconderem atrás da cruz de Cristo, como o apóstolo Paulo sugeriu aos colossenses, tais ministros se escondem atrás de um púlpito embebido na ignorância.
Ora, ao amalgamar a liberdade religiosa ao direito de proferir violentos impropérios sobre a religião alheia, a banca advocatícia dos Jack’s hodiernos acaba por sedimentar a cultura da violência e a promoção da intolerância. Chega a ser uma contradição como que, em nome do Deus de amor e da liberdade religiosa, todo discurso de ódio passa a ser tolerado.
Ocorre que estamos diante do que Karl Popper, de modo benfazejo, chamou de paradoxo da tolerância. Em sua obra, “A sociedade aberta e seus inimigos” Popper afirma que:
A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. (POPPER, 2012).
Ora, a quem interessa a preservação desta ilimitada liberdade, senão ao fundamentalismo em seu anseio de perpetuação da guerra cultural? E como, após quatro anos de plena vigência do bolsonarismo, alguém consegue ainda sustentar tal linha de defesa? Linha esta que nos levou ao negacionismo, ao obscurantismo, à misoginia e à misologia, chegando as raias da perda de nossa noção de civilidade, tal qual construída pelo Ocidente e sob o “palimpsestico” manto do texto bíblico, como nos lembra Edward Said e Erich Auerbach?
Em pleno século XXI, não cabe mais a tolerância de discursos que estripam a religiosidade alheia. Tampouco é aceitável ameaçar quem o faz. Aos Jack’s do nosso tempo, que ao contrário do que viveu no século XIX são identificáveis e podem ser encontrados, espera-se que sejam instruídos no Evangelho da Graça de Jesus, o mesmo que quando infante, recebeu presentes oriundos de praticantes de uma tradição espiritualista. Ora, se tal alargamento conceitual, se tal compreensão, foi possível aos limitados palestinos do chamado primeiro século, por que não poderia ser plausível para nós hoje?
Que o sentido de coexistência, bem como da importância que a diferença tem para a formação de uma identidade (seja pessoal, étnica, social, ou mesmo religiosa) como nos lembra Hegel, ganhe cada vez mais espaço, sedimentando os caminhos para a tolerância.
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