Terminada a festa, volta o calvário da população LGBTQIA+

Terminada a festa, volta o calvário da população LGBTQIA+

O mês de junho é mundialmente reconhecido como o Mês da Diversidade, de celebração da luta por direitos da população LGBTQIA+. Foi escolhido por ter sido marcado por uma revolta: em 28 de junho de 1969, clientes do bar Stonewall Inn, famoso reduto gay de Nova Iorque (EUA), se rebelaram contra as constantes e violentas batidas da polícia local. A briga durou dias, mas foi o ponto de partida para o movimento pelos direitos civis e humanos da comunidade LGBTQIA+.

Aqui em São Paulo, celebramos o mês com a Parada do Orgulho LGBT+. A 27ª edição do evento, no dia 11 de junho, foi linda, como sempre. Um evento grandioso como esse é esperado pela cidade não apenas pela sua alegria, mas, principalmente pelo dinheiro que movimenta o comércio, restaurantes e a hotelaria. Mas, terminada a festa, será que a população LGBTQIA+ tem mesmo o que comemorar? Ou o calvário pelo reconhecimento e por um atendimento digno continua?

O tema dessa edição foi “Queremos políticas sociais por inteiro, não pela metade”. Me pergunto: hoje há atendimento digno e que respeite as performances de gênero nos serviços públicos, mesmo que seja pela metade? Minha experiência diz que não. Desde 2013, pesquiso o atendimento oferecido pelo poder público paulista para dependentes químicos nas cenas abertas de uso de drogas que se convencionaram chamar de cracolândias. Atendimento esse que se apoia na abstinência e na religiosidade.

Para a população LGBTQIA+ dependente química, o serviço público disponível está longe do ideal. Não há uma política pública abrangente, interdisciplinar e inclusiva, mas sim algo baseado em convênios feitos via editais públicos com organizações sociais ou comunidades terapêuticas religiosas, cristãs basicamente. Mesmo que esses grupos sejam acolhedores inicialmente, têm grande dificuldade de aceitar as diferentes identidades de gênero porque acreditam apenas a binariedade dos sexos, conforme está escrito em Gênesis 1:27 - E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.

Conhecer o universo de pessoas que frequentam as cenas de uso é uma tarefa complicada, principalmente depois do espalhamento da cracolândia pela cidade. O mais recente Levantamento das Cenas de Uso em Capitais, feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e divulgado no final de 2022, aponta que o público médio nos fluxos é de 934 pessoas, formado por 73,8% de homens, 22,5% de mulheres e 3,73% de transgêneros. Esse número é irreal. Qualquer pessoa que ande pela cidade percebe isso diante do número cada vez maior de mini-cracolândias em cada canto.

Por questões de segurança, não foi realizado levantamento nos períodos noturnos. De acordo com o próprio relatório da pesquisa, o público que frequenta os fluxos pode quase dobrar à noite. E é justamente nesse período que o número de mulheres (cis ou trans) tende a ser mais alto, o que pode resultar em uma subnotificação de público. Consequentemente, a subestimação dos dados resulta em menos vagas de atendimento e no treinamento inadequado das pessoas envolvidas na abordagem, sempre realizada com viés androcêntrico, ou seja, colocando o masculino como representação do todo.

Vejamos o caso do Recomeço, programa estadual de atenção ao uso de crack e outras drogas. Atualmente, quem gerencia o programa é a organização social religiosa Samaritano São Francisco de Assis, que venceu o edital de chamamento público de 2022. O número de vagas totais em comunidades terapêuticas e repúblicas oferecidas pelas organizações sociais religiosas é de 1432, sendo que apenas 200 delas são oferecidas para o público feminino. É bom lembrar que essas vagas são para todo o Estado de São Paulo e não apenas para a Capital. Mas o que me parece mais grave: não há previsão de acolhimento para a comunidade LGBTQIA+ no texto do edital.

Esse conservadorismo traz consequências cruéis para as pessoas trans que são dependentes químicas e precisam recorrer ao serviço público na busca pela recuperação. Ao repassar o cuidado dos dependentes químicos aos grupos religiosos, o poder público busca solucionar a falta de retaguarda própria de assistência. Mas acaba oferecendo um atendimento que cria bolsões de exclusão dentro de grupos já excluídos pela sociedade.

Como dito aqui anteriormente, instituições religiosas têm dificuldades em compreender as performances de gênero que fujam do conceito binário de masculino e feminino porque tudo que foge desse conceito é automaticamente considerado um pecado. E a não previsão de atendimento desse público no edital do principal programa estadual aos dependentes químicos é a prova de como os programas de atendimento continuam ignorando e invisibilizando a comunidade LGBTQIA+. E o que não se nomeia, não existe para as políticas públicas.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.