Solidão e fé no caminho para a recuperação
No último dia 6 de junho, a Câmara Municipal de São Paulo sediou uma audiência pública para criação do Dia Municipal da Recuperação, pleiteado para ser celebrado no último domingo do mês de março. O projeto é uma iniciativa do Faces & Vozes, organização de defesa da recuperação de dependentes de álcool, drogas e outras substâncias, e já passou pelo plenário, aguardando agora a segunda votação, de acordo com o vereador Toninho Véspoli (PSOL), que presidiu a sessão.
Durante a audiência, muitas pessoas prestaram depoimentos relatando os desafios dos anos que estão em recuperação. Nas falas, sempre emocionadas, um sentimento era constante: a solidão do processo. A busca pelo direito de ser reconhecido como indivíduo recuperado, que pode ser útil para a sociedade, enfrenta estigmas e preconceitos. E com a indiferença do poder público, o que lhes resta é a fé que um dia tenham seus direitos respeitados.
Os serviços apresentados como política pública para os chamados transtornos por uso de substâncias têm seus esforços direcionados para o tratamento. Quase nada é feito para a prevenção do avanço do problema e muito pouco no processo de apoio à recuperação daqueles que conseguiram se afastar do vício, como projetos de reinserção social e profissional, além de reatamento de vínculos familiares e afetivos, para que a pessoa possa levar uma vida normal e produtiva.
O que temos hoje em São Paulo é um trabalho que pensa majoritariamente no problema que se vê, que são os fluxos de uso de drogas popularmente chamados de cracolândias. O fato é que uma pessoa para cair nas ruas por conta da dependência química trilhou um caminho de anos, às vezes de décadas, até chegar ali. E foi levada pela família, por amigos, por alguém que se preocupa com ela a vários equipamentos de ajuda, sejam de saúde ou assistência social.
Em nenhum lugar se acende uma luz amarela para que o protocolo de prevenção seja acionado e tanto o dependente químico como sua família recebam algum apoio efetivo. Isso não existe. E o doente e as pessoas que se preocupam com ele continuam num caminho errante de solidão e desamparo, com a esperança se transformando em frangalhos, assim como suas vidas. Como ainda espera-se que uma enorme massa de pessoas, com tantos anos de abuso de drogas, com a saúde (a mental inclusive) mais que debilitada, sem vínculos familiares ou sociais seja recuperada? Por milagre?
Mesmo nos casos de sucesso, a busca pela recuperação é também um longo caminho solitário. A solidão pode ser amenizada pelos grupos de apoio como Alcoólicos Anônimos e correlatos. Mas fora das reuniões, a luta contra o estigma e o preconceito é enorme, principalmente em uma sociedade que tem dificuldade em entender a dependência química como uma doença. A mesma dificuldade de compreensão que se vê nos programas de atenção que se baseiam no acolhimento em comunidades terapêuticas religiosas que entendem a dependência química como um pecado que só será expiado quando Jesus for aceito como salvador.
O programa Recomeço é a melhor vitrine dessa linha de atendimento. Antes de ser criado formalmente em 2013, o governo do Estado de São Paulo fez um convênio com a Associação Missão Belém, entidade católica, para o acolhimento dos dependentes químicos retirados da cracolândia quando ela ainda estava na praça Júlio Prestes e arredores. O convênio não foi renovado, mas em seu lugar veio o Recomeço, confirmando a aposta na religião como terapia.
Assim, São Paulo foi um dos primeiros estados do País a apoiar o trabalho das comunidades terapêuticas, incluindo o atendimento na política pública de atenção aos dependentes químicos. Com isso, outros estados seguiram a mesma linha e hoje o acolhimento nessas casas é basicamente o único modelo que recebe financiamento contínuo e crescente, muitas vezes em detrimento de outras formas de terapia como a redução de danos ou os serviços prestados pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) especializado em álcool e drogas.
A pessoa em tratamento da dependência química tem direitos, inclusive de receber uma oferta de serviços multidisciplinares. O Estado tem a obrigação de apresentar uma política ampla de procedimentos que incluam prevenção, tratamento e também o acompanhamento da recuperação das pessoas atendidas. Mas continua insistindo em algo que mistura um pouco de assistência social com muito de proselitismo religioso.
Já repeti aqui outras vezes que o que temos hoje é baseado em uma linha única de atendimento que, apesar de parecer inclusiva inicialmente, deixa muita gente de fora: não cristãos, não crentes e principalmente pessoas que não se enquadram na moral cristã de comportamento, como a população LGBTQIA+. Assim como já repeti outras vezes que é improdutivo apontar o dedo apenas para as comunidades terapêuticas. Sempre haverá casos de sucesso a serem reportados, resultado da perseverança e fé das pessoas que passaram por essas casas. Como questionou Rubem Alves: existirá alguma outra alternativa para aqueles que diariamente experimentam a impotência? Deveria existir.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.