Sobre lutos, lutas, fé e o direito ao território
Na noite do dia 17 de agosto de 2023, em diferentes grupos de whatsapp, circularam concomitantemente mensagens que informavam, ainda de maneira desencontrada, sobre o assassinato de Mãe Bernadete Pacífico, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, Bahia.
No dia seguinte foram amplamente noticiadas as informações sobre quem foi Mãe Bernadete e sobre os traços de crueldade que caracterizaram a execução.
Mãe Bernadete foi uma lutadora pelo direito ao território quilombola e uma mãe que, ao longo de anos, lutou para que o assassinato de seu filho Binho não ficasse impune. Mãe Bernadete foi uma sacerdotisa de sua fé ancestral, o Candomblé. Integrou a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Por causa de seu compromisso com a luta pelo direito ao território e por jamais ter se calado diante do assassinato de seu filho, Mãe Bernadete era uma das defensoras de direitos humanos assistida pelo Programa de Proteção de defensores e defensoras de Direitos Humanos do governo federal. Ela estava também sob proteção da polícia militar pela Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia. Todas estas medidas não foram o suficiente para que Mãe Bernadete seguisse viva e com voz ativa e cidadã por um país e uma democracia que concretizada e aprofundada na demarcação dos territórios quilombolas.
O caso de Mãe Bernadete atualiza nosso passado escravocrata. Se durante os anos de escravização, pessoas negras eram batizadas na fé cristã à força e as que tentavam a liberdade eram alvo dos chicotes, dos troncos, das máscaras de ferro e da perseguição de capitães do mato, hoje, as torturas seguem por meio da violência policial, da manutenção dos privilégios de uma elite branca, da negação do direito ao território e do racismo religioso, que pode não batizar à força, mas assim como nos tempos inquisitoriais, incendeia, quebra e apedreja terreiros.
No dia de seu assassinato, Mãe Bernadete estava sentada no sofá de sua sala, cercada por seus netos e filhos/as de Santo quando alguém bateu à sua porta. Ela recepcionou os assassinos, chamando-os carinhosamente de filhos. A resposta à sua hospitalidade foi revidada com vinte tiros, sendo que doze no rosto.
O crime, ao que tudo indica, tem relação com conflitos fundiários. O território quilombola está em uma área de especulação imobiliária. Sabemos que na história do Brasil, o dinheiro, as influências políticas e privilégios elitistas sempre foram e são mais fortes do que a história e a mobilização de um povo organizado.
Embora o assassinato de Mãe Bernadete não tenha relação com a intolerância religiosa, é difícil não pensar sobre a expansão de grupos missionários cristãos proselitistas nos territórios quilombolas, que, por meio de uma pregação exclusivista e negadora da história comunitária, apagam a memória ancestral preservada pela oralidade destas comunidades. Missões proselitistas são um ser estranho em um território quilombola, pois, geralmente, chegam de fora, não têm relação com a memória do Quilombo e nem com a história de resistência e de luta destas comunidades. Não raras vezes, tendem a desarticular o processo de organização na luta pelos territórios, favorecendo direta ou indiretamente os especuladores.
O assassinato de Mãe Bernadete insere-se ainda em um contexto em que se tem discutido muito sobre se os governos, especialmente, os progressistas sabem ou não dialogar com “os evangélicos” que têm crescido em número no Brasil. É recorrente o discurso de que quem quer ganhar as eleições precisa saber conversar com os “evangélicos” e atender suas agendas políticas que giram em torno do reconhecimento de uma única formação de família, pela ideologia de gênero, por uma escola militarizada e sem partido, entre outros temas.
Povos quilombolas ficam fora do horizonte das disputas políticas nas prefeituras, câmara de vereadores/as e das eleições nacionais porque não negociam seus votos, mas reivindicam o seu direito ao território e à existência, que envolve suas espiritualidades, suas ancestralidades, suas oralidades e coletividades.
Reivindicar privilégios políticos valendo-se da força numérica das pessoas evangélicas parece-me algo que segue na direção contrária de Jesus, que nunca negociou com o poder de sua época sob o argumento de ser seguido por uma multidão.
Minha fé, evangélica, me confere a certeza que Jesus, nos tempos de hoje, não estaria em nenhuma marcha dedicada a Ele, muito menos reivindicando privilégios. Jesus, certamente, estaria ao lado da luta de Mãe Bernadete e, junto com seus netos e filhos e filhas de sangue, choraria frente à crueldade e ambição humanas.
Para quem ocupa os espaços de representação política cabe a provocação de que estabelecer alianças com grupos religiosos representativos em troca de voto não é o melhor caminho. Para o Brasil ser um país realmente democrático é urgente que a grande prioridade seja a agenda antirracista concretizada na demarcação de territórios quilombolas e indígenas.
Se optarmos em seguir sendo um país em que o cinismo reina, histórias como a de Mãe Bernadete se repetirão.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site
Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.