A presença de evangélicos brasileiros no exterior: um panorama inicial
Para além do campo evangélico, diversas crenças brasileiras têm circulado pelo mundo desde o século passado. Esse é o caso de religiões de matriz africana ou de matriz indígena, por exemplo. Contudo, nada tem sido mais impactante no cenário global do que a presença dos evangélicos brasileiros, principalmente, desde os anos 1990.
Podemos encontrar uma série de nomenclaturas para esse fenômeno contemporâneo de circulação do sagrado: transnacionalização ou globalização religiosa são os mais usuais. O Brasil que, ao longo dos séculos, tornou-se um grande receptor de religiões estrangeiras devido aos diferentes fluxos, forçados ou não, de colonização, viu essa balança religiosa se inverter nas últimas décadas, sobretudo devido à atuação dos evangélicos.
Isso tem chamado muito a atenção, tanto de estudiosos quanto das sociedades locais, quer dizer, daqueles países que recebem igrejas ou agentes evangélicos brasileiros. Talvez isso explique porque pouca informação sobre essa presença circule na grande mídia brasileira, estando o debate mais reduzido ao campo acadêmico especializado. A propósito, o debate e a reflexão a respeito da chamada “transnacionalização religiosa brasileira” deve-se, em grande medida, ao campo evangélico nacional e seus fluxos internacionais.
A presença evangélica brasileira lá fora se realiza de maneiras múltiplas, para todas as partes do mundo, repleta de impactos, impasses, controvérsias e desafios. Também, ela carrega consigo traços de nossa cultura, a partir de modelos e formas distintas do evangelismo nacional, concebidas em nosso país e que tem atraído cada vez mais pessoas no estrangeiro, dependendo do lugar, certamente. Portanto, é importante considerar que, junto com essas crenças, circulam também aspectos culturais, sociais e políticos daqui, seu contexto de origem.
Mas, afinal, quem são os evangélicos brasileiros que mais tem marcado presença no exterior? O que pode explicar que em alguns lugares do mundo eles encontram cenários mais favoráveis para se estabelecer do que em outros?
Basicamente, observamos dois modelos de globalização evangélica empreendida pelo campo brasileiro. Primeiro, temos o caso de agentes individuais, como pastores, pregadores, músicos gospel, assim por diante, aqui incluídos os líderes de pequenas igrejas que buscam relações com igrejas estrangeiras a fim de alavancar seu crescimento local. O segundo modelo, este mais relevante, é aquele empreendido pelas megaigrejas pentecostais ou neopentecostais brasileiras, capazes de gerar, em muitos casos, impactos significativos nas sociedades locais que a recebem.
São duas as principais igrejas brasileiras que marcam presença no exterior: a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA), fundada em junho de 1962 pelo já falecido missionário David Miranda, e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em maio de 1977, pelo bispo Edir Macedo.
Segundo dados das próprias igrejas retirados de seus portais na Internet, em dezembro de 2023, a IPDA credita estar presente em 88 países, enquanto que a IURD, segundo ela própria, soma presença em 143 países, totalizando mais de 12,5 mil templos abertos fora do Brasil. Por curiosidade, recordo que quando comecei a estudar o assunto, no começo dos anos 2000, essa liderança estava invertida, com a IPDA marcando presença em mais países do que a IURD.
Por mais impactante que aparente ser, esses números podem ser relativizados, ao menos, conforme aquela velha lógica que ainda nos ensina que “quantidade não é qualidade”. O exemplo da presença da IURD no exterior, a maior dentre todas as igrejas brasileiras lá fora, tem muito a nos dizer sobre isso.
A IURD, embora esteja presente numa centena de países, encontra em distintas regiões do planeta ambientes muito mais acolhedores para si do que outros. Isso se deve a alguns fatores pontuais.
O cenário é mais favorável naqueles países onde o cristianismo, de fundamento mais conservador (seja católico ou evangélico), esteja estabelecido e onde os efeitos disruptivos do capitalismo tardio e da ordem econômica global sejam mais presentes, permitindo uma aderência frutífera entre demandas espirituais e socioeconômicas locais, sobretudo, de classes populares e entre imigrantes, grupos, portanto, mais afeitos ao proselitismo evangélico iurdiano fundamentado na teologia da prosperidade e nos rituais de cura espiritual.
Esse é o caso, sobretudo, dos países da América Latina. Isso não significa dizer que a presença de evangélicos brasileiros na região deixe de apresentar suas tensões, conflitos e desafios que, aliás, são registrados até hoje. Mas, com efeito, encontram-se nessa região as nações onde o evangelismo brasileiro, como um todo, conseguiu se estabelecer com mais propriedade até o momento, destacando-se a Argentina.
A fim de ilustrar o que temos dito, voltamos ao exemplo da IURD, nesse caso, de sua presença na Argentina. No país vizinho, desde que lá chegou, em 1989, ela contabiliza aproximadamente 230 templos e milhares de fiéis espalhados por todas as províncias do país, além de possuir múltiplos espaços nas mídias, inclusive sendo detentora de canais de comunicação locais e com forte atuação também na internet e nas redes sociais. Aqui temos, portanto, um exemplo de “quantidade” aliado a “qualidade”, devido a sua já consolidada penetração na sociedade local. Aliás, diante da recente eleição para presidente de Javier Milei, político reconhecidamente conservador, será interessante, e importante, observarmos a relação daquele Estado com as igrejas evangélicas brasileiras, como a IURD, que nunca gozaram de muito prestígio dentre as instituições e camadas sociais mais favorecidas daquele país, fato que não se limita a ele.
Assim, devemos sempre considerar a relação que cada nação e seus governos e leis estabelecem com a questão da imigração em geral e da presença de instituições religiosas estrangeiras no país. É por isso que encontraremos lugares mais abertos ou mais fechados para a transnacionalização de igrejas brasileiras como a IURD, que, ao longo dos anos, tem desenvolvido modelos de inserção no espaço público (mídias, templos, política, gestão, finanças, globalização etc.) que servem de inspiração para todo o campo neopentecostal.
Portanto, a presença da IURD pelo mundo constitui um verdadeiro panóptico a respeito da própria presença evangélica brasileira no exterior. Vejamos um panorama.
Na América do Norte, a IURD abriu seu primeiro templo nos arredores de Nova Iorque, em 1986, chegando ao Canadá em 1993. Na Europa, sua presença mais significativa se registra em Portugal, país onde a IURD abriu seu primeiro templo em 1989. Dali se expandiu rapidamente para outros países, como Espanha, França, Inglaterra, Suíça e Bélgica, para, enfim, inaugurar templos em outros países do centro e do leste do continente. Nesses países, mais desenvolvidos economicamente, sua atividade se concentra em arrebanhar populações de imigrantes.
A IURD também chegou à Ásia e à Oceania, abrindo templos ou ao menos salas e escritórios em países como Índia, Japão, Filipinas e Israel, ou ainda na Austrália e na Nova Zelândia, a começar pelos anos 1990. Em África, destaca-se sua presença primeiramente em Angola (desde 1991), Moçambique (1992) e na África do Sul (1992-1993), mas também em outros países, sobretudo da chamada “África negra” ou subsaariana. Em alguns desses locais, inclusive, a IURD também é detentora de poderosas redes de comunicação.
Ao cabo, há muita diferença entre possuir templos, catedrais da fé e até redes de comunicação do que possuir apenas uma sala alugada. Contudo, enquanto números absolutos, isso costuma ser considerado nessa espécie de “cruzada evangélica brasileira” ao redor do mundo, ao menos, por parte das igrejas.
Enquanto verificamos conflitos e dificuldades de estabelecimento, mormente junto às instituições nacionais e classes altas e médias dos países de recepção, o evangelismo brasileiro ao redor do mundo também consegue atuar com temas diversos a respeito de dramas pessoais e familiares, procurando mostrar a amplitude do valor de suas doutrinas como subsídio religioso, moral e de apoio institucional na resolução de problemas como crises profissionais e financeiras, de autoestima, desequilíbrio emocional e mudanças nas relações familiares junto àquelas populações urbanas que mais sofrem com a exclusão econômica e social, decorrente do atual sistema capitalista global.
Portanto, no contexto da transnacionalização das megaigrejas evangélicas nacionais, ou mediante empreendimentos mais modestos e até pessoais, o fluxo do evangelismo brasileiro e sua presença ao redor do mundo constitui um fenômeno importante, que merece ser cada vez mais bem observado.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Marcelo Tadvald é Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NER - Núcleo de Estudos da Religião, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS). Possui Pós-Doutorado em Antropologia Social pelo Programa Nacional Capes, com pesquisas sobre religião, política e direitos humanos. É autor e organizador de 8 livros, dos quais destaca-se: “Veredas do sagrado: Brasil e Argentina no contexto da transnacionalização religiosa. Porto Alegre: Cirkula, 2015. 1ª. ed. 367p.”, além de inúmeros artigos, capítulos de livros e textos publicados no Brasil e exterior. Também integra os Grupos de Pesquisa do CNPq: “Antropologia e Direitos Humanos” e “Transnacionalização evangélica brasileira para a Europa”. Atua ainda como consultor e assessor de órgãos do Governo Federal e sociedade civil. Contato: marcelotadvald@gmail.com