"Sex Education" aborda a realidade de jovens cristãos LGBTQIA+ e o desafio do acolhimento pastoral nas igrejas

"Sex Education" aborda a realidade de jovens cristãos LGBTQIA+ e o desafio do acolhimento pastoral nas igrejas

A compatibilidade ou não de ser uma pessoa LGBTQIA+ e cristã é um dos temas da quarta temporada da série “Sex Education". Apesar do contexto britânico e ficcional, a produção da Netflix endereçada ao público jovem aborda um dilema real que permeia muitas igrejas mundo afora: é possível estabelecer uma relação respeitosa e honesta entre famílias, lideranças e sujeitos dissidentes de sexo e gênero? Um spoiler, da série e da vida real: sim, é possível.

Na série, a discussão central gira em torno da encruzilhada enfrentada por Eric Effiong (personagem de Ncuti Gatwa). Adolescente negro e gay, ele desfruta de uma vida de liberdade no colégio e em outros espaços de sociabilidade. Contudo, sua liberdade esbarra no desejo de seu pastor e de sua mãe, que anseiam que ele seja batizado e viva conforme os 'valores cristãos' dentro de sua comunidade de fé. Para alcançar isso, é necessário que Eric renuncie a 'todos os seus pecados'. A narrativa destaca a conhecida dicotomia entre as coisas de Deus e as do mundo

O binarismo que Eric enfrenta é uma realidade constante na vida de indivíduos LGBTQIA+ religiosos: a árdua e desumana escolha entre viver abertamente suas orientações sexuais e identidades de gênero, o que, muitas vezes, implica em deixar a igreja, ou renunciar a essa parte fundamental de sua humanidade para permanecerem dentro de suas comunidades religiosas.

A renúncia pode ocorrer de diversos modos: através de uma vida dupla, da castidade celibatária, ou até mesmo ao submeter-se a terapias de reversão sexual. De um modo geral, todas essas estratégias para conformar a vida a um sistema sexo-gênero normativo, visando viver uma suposta vida cristã plena, são violentas.

A dimensão racial também influencia o personagem de "Sex Education". Sua igreja cristã e negra representa um refúgio e uma fonte de fortalecimento para uma comunidade afro-britânica em um país colonizador marcado por uma hierarquia racial. Optar por viver sua sexualidade sem culpa é percebido por seu pastor e familiares como uma negação de suas raízes cristãs e africanas. Em última instância, é interpretado como uma recusa ao amor e ao acolhimento de sua comunidade de origem.

Deixar uma vida comunitária religiosa, seja por escolha própria, pressão, perseguição ou outras formas de violência, devido à orientação sexual ou identidade de gênero, não é a única opção. Existem outras possibilidades. À medida que a ciência e o movimento social enfatizaram que as sexualidades e identidades de gênero dissidentes não são desvios, doenças ou pecados, pessoas cristãs dentro dessas populações - que também desempenham um papel na construção da noção de cidadania LGBTQIA+ – estão fortalecendo sua presença em espaços de fé e quebrando a visão estigmatizada que associa o cristianismo à aversão à diversidade sexual e de gênero.

Em diferentes locais, igrejas, grupos, redes e organizações cristãs estão engajados na defesa da dignidade civil e religiosa das pessoas LGBTQIA+. A Igreja das Comunidades Metropolitanas, por exemplo, é a primeira denominação cristã LGBTQIA+ do mundo e foi fundada por um reverendo gay em 1968 nos Estados Unidos, um ano antes das Revoltas de Stonewall, que são consideradas o marco inicial do movimento homossexual contemporâneo. Além disso, ainda no Norte Global, setores de igrejas históricas europeias, como a Anglicana, têm demonstrado abertura para mulheres e pessoas LGBTQIA+, apesar das pressões e oposições internas.

O fenômeno se estende a outras regiões. Quênia, Uganda, Ruanda e Zimbábue são alguns países do continente africano onde líderes cristãos, em parceria com a organização afro-americana The Fellowship of Affirming Ministries, estão construindo redes para apoiar os direitos das populações LGBTQIA+, apesar da narrativa hegemônica que nega a diversidade sexual e de gênero em seus países.

No Brasil, assim como em toda a América Latina, a situação não é diferente. O coletivo Evangélicxs Pela Diversidade é apenas um exemplo de iniciativa que trabalha para "ampliar e qualificar a conversa sobre a relação entre diversidade sexual, identidade de gênero e fé evangélica", como afirma em seus canais de comunicação.

Além das citadas organizações específicas que abordam essa temática, há também comunidades locais que estão transformando visões cristalizadas de sexualidade e gênero para acolher seus membros, assumindo de maneira genuína tanto os benefícios quanto os desafios desse movimento.

A produção audiovisual destaca que o testemunho - uma poderosa tecnologia do cristianismo - das pessoas LGBTQIA+ é fundamental para que as comunidades de fé enfrentem o desafio do acolhimento pleno. Impelido por sua fé em Deus, Eric faz um discurso diante de toda a sua igreja e consegue tocar os corações mais resistentes. Embora a vida real seja mais complexa, é preciso estabelecer um consenso: o direito à fé não pode ser negado, independente da orientação sexual ou identidade de gênero.

Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Jeferson Batista é jornalista formado pela PUC-Campinas, com mestrado em Antropologia Social pela Unicamp. Atualmente, está cursando o doutorado na mesma área e universidade. Já contribuiu para a Folha de S.Paulo, Estadão, Revista piauí e outros veículos. Além disso, realiza pesquisa de campo com grupos cristãos que atuam no campo dos direitos humanos.