Será a utopia de uma cristandade sionista no Brasil o horizonte da extrema-direita cristã?

Será a utopia de uma cristandade sionista no Brasil o horizonte da extrema-direita cristã?
Imagem: Rafael Neves/UOL.

No domingo, dia 25 de fevereiro, acompanhamos, especialmente, pelas redes sociais tanto de direita, quanto de esquerda o ato convocado por Silas Malafaia e afins para expressar apoio ao ex-presidente, alvo de investigações por suposta tentativa de golpe de Estado. Espero que não tenham jogado para segundo plano a responsabilidade direta e indireta do ex-presidente pelas mais de 700 mil mortes por COVID-19. Para refrescar a memória, vale a leitura do relatório da CPI da COVID-19, disponível em: https://drive.google.com/file/d/1wyq0Lwe0a6mLRz1a4xKqdpjarIWTDXPj/view

Como em qualquer manifestação não faltaram analistas dedicados a medir o tamanho do Ato. De todas as análises, a melhor e mais direta foi feita pelo Presidente Lula: “Eles fizeram uma manifestação grande em São Paulo. Mesmo quem não quiser acreditar, é só ver a imagem. Como as pessoas chegaram lá, é outros 500.”[1]

Deixando de lado a envergadura do Ato, orações, bênçãos, a utilização distorcida da música símbolo da luta contra a ditadura, de Geraldo Vandré “Para não dizer que não falei de flores”, chamo a atenção para dois fatos. O primeiro deles foi a abundância de bandeiras do estado de Israel em um ato que se autodenomina patriótico. O segundo foi o perfil das pessoas manifestantes, divulgado pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP). Segundo os dados, dos 575 manifestantes entrevistados, 62% eram homens e 38% mulheres, com média de idade entre 45 a 65 anos, 65% se autodeclaram brancos, 26% pardos, 5% se reconheceram como pessoas pretas e 1% indígena. Quanto à escolaridade, 67% afirmaram ter Ensino Superior. No entanto, de todos os dados do perfil um dos que mais chamou a atenção foi o o do pertencimento religioso: 43% se declararam católicas, 29% evangélicas, 10% espírita/Kardecista, 10% sem religião e 7% de outras religiões.

Desde que a extrema direita cristã brasileira passou a ter mais visibilidade e força política, se tornou natural a relação direta entre ser evangélico e ser de extrema-direita. Algumas características genéricas associadas aos movimentos de extrema-direita eram o baixo nível de formação e a incapacidade das pessoas de enxergar o obscurantismo das pregações evangélicas. Poucas análises consideraram a história da presença evangélica e sua relação com a abertura de escolas, especialmente, nas periferias de grandes e pequenas cidades. Poucas pesquisas também conseguiram captar a relação entre a presença evangélica e o processo de urbanização do país e da sindicalização de trabalhadores e trabalhadoras. Aliás, a palavra “evangélico” tornou-se sinônimo de obscurantismo, autoritarismo, incapacidade de pensamento crítico, intolerância, sexismo e alienação.

A ascensão de Bolsonaro na política foi automaticamente relacionada com o crescimento evangélico no país. Se desconsiderou o fato de o próprio Bolsonaro sempre ter se apresentado como católico romano, mesmo tendo sido batizado nas águas do Rio Jordão, por um pastor evangélico. Prática, aliás, não aceita pela Igreja Católica Romana que por questões doutrinárias e dogmáticas, não reconhece o batismo das igrejas evangélicas. Bolsonaro não foi questionado por religiosos católicos por se dizer católico, mesmo tendo sido rebatizado em um ritual totalmente avesso à doutrina batismal católica. Católicos sem influência política e sem poder, provavelmente, seriam sancionados por desrespeitarem a doutrina do sacramento do Batismo. Bolsonaro é a representação simbólica da simbiose entre extrema direita católica romana e extrema direita evangélica e seu duplo batismo indica isso. Portanto, nunca houve no país um catolicismo progressista e um evangelicalismo extremista. O cristianismo no Brasil, tanto católico romano, quanto evangélico, sempre foi plural. O cristianismo brasileiro historicamente suportou grupos identificados com valores democráticos e grupos pouco ou nada aderentes aos valores emancipatórios. A relação simplória entre ser evangélico e ser de extrema direita contribuiu para a baixa compreensão do avanço da extrema direita cristã no país, que sempre estabeleceu alianças estratégicas na defesa de agendas contrárias aos direitos humanos e a favor da concentração agrária e das riquezas. Não surpreende que as principais expressões culturais de extrema direita cristã sejam o gospel, em suas mais variadas versões, o sertanejo universitário e eletrônico. Da mesma forma, não surpreende que seus símbolos sejam a bíblia, Nossa Senhora de Fátima e a hilux.

Os resultados da pesquisa da USP sobre a pertença religiosa dos manifestantes pró-bolsonaro, rompem com os estigmas. Afinal, quem elegeu Bolsonaro, quem protagonizou a tentativa de golpe de 08 de janeiro? Evangélicos ou católicos? Resposta: nenhum e nem outro, mas uma direita cristã, formada por católicos, evangélicos e espíritas. São brancos, homens, em sua maioria, de classe média, instruídos e saudosos da ideia de cristandade.

Quando me refiro à cristandade, estou me referindo ao colonialismo, ao autoritarismo e ao militarismo: cruz e espada atualizadas na imagem da bíblia junto à metralhadora, que aponta para todo e qualquer entrave que possa impedir o avanço da mineração, da concetração agrária, da manutença de privilégios. Esta direita cristã tem padres, pastores, apóstolos como seus mentores espirituais.
É possível que o saudosismo pela cristandade contribua para entender o uso massivo das bandeiras de Israel nas manifestações de extrema-direita. A bandeira de Israel para este grupo pode representar o horizonte desejado, ou seja, um estado religioso, militarizado, colonialista, construtor de muros e vingativo como, especialmente, nos últimos meses, tem se mostrado a política do atual governo de Israel. Para estes cristãos de extrema direita, a bandeira de Israel não representa a bandeira de um país. Talvez, por isso, algumas senhoras entrevistadas durante a manifestação, disseram que Israel as representa, pois, “não são socialsitas e nem comunistas e Israel está como nós”.

Não compreendo que a explicação destas senhoras ao serem perguntadas da razão pela qual portavam a bandeira de Israel amarrada ao corpo junto com a bandeira do Brasil, seja unicamente expressão de ignorância. Entendo que Israel, para a extrema direita cristã, tenha se convertido no símbolo do que, para elas, caracteriza um Estado ideal: supremacista, antisocialista e cristão. Assim como Cuba, representa um ideal de igualdade, para a esquerda latino-americana, Israel é, hoje, um ideal para a extrema-direita cristã brasileira.

[1] https://www.poder360.com.br/governo/ato-de-bolsonaro-foi-grande-e-imagens-comprovam-diz-lula/


*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.