SER CRISTÃO PROGRESSISTA ESTÁ NA MODA?
Hoje tudo parece que está mais em destaque e tem um holofote maior por conta das redes sociais que saturam o ambiente de informação.
Entender progressista somente como mudança de comportamento é muito raso. Ainda mais quando se tem o ambiente cristão/evangélico por detrás disto. Em contrapartida, sim, busca-se uma mudança de comportamento de como se rege uma sociedade injusta, desigual e a libertação de vítimas que não possuem voz num sistema estrutural que se retroalimenta da maldade.
Por falar em mudança de comportamento social os puritanos do século XVII e XVIII causariam um escândalo hoje ao afirmarem que o divorcio era consentido e livre no simples fato quando um dos cônjuges deixasse de cumprir seu papel na relação. E olha que estamos falando de gente tida como conservadores da fé cristã.
Um progressista cristão não acredita na utopia de um mundo melhor. Ao ser solidário e combater a corrupção humana o mundo não será um paraíso. Acredita-se que o mundo não precisa ser tanto cruel e mal quanto é. A presença do cristão é o freio que com a sinalização do reino de Deus diminui o avanço da maldade entre os homens e mulheres.
Quem na verdade é progressista é o capitalismo e o liberalismo que acreditam que o ser humano pode melhorar e crescer na vida com o avanço da tecnologia, ciências, bens e consumos.
Mas voltemos ao tema em si. Vivenciamos por conta do cenário político a discussão de cristãos conservadores e cristãos progressistas. Esta divisão se dá pela seguinte forma: o atual governo que aparentemente defende a moral e os bons costumes, a favor da família e o casamento homem e mulher tem o apoio quase que maciço dos cristãos conservadores. Os governos anteriores ditos de esquerda tiveram apoio dos cristãos progressistas que segundo os conservadores são contra a família, a vida e a moral. Mas nas últimas semanas os maiores escândalos vieram da ala conversadora envolvendo políticos e religiosos.
Criou-se um estereótipo promovido pela direita que se alguém é um cristão progressista rasgou o texto sagrado (a Bíblia), mas de onde procede tal afirmação?
O que acredita um cristão progressista? Ele acredita que existe um mal resultado do pecado da queda humana que não ficou somente atrelado ao coração do ser humano, mas que se estendeu a tudo o que o ser humano faz, toca e cria inclusive as estruturas sociais e de poder. Acredita-se que a miséria e a desigualdade são frutos deste mal. A dignidade da mulher é aviltada e tratada como objeto de posse como reflexo deste mal. Ou seja, todas as calamidades do mundo estão no simples fato deste rompimento do ser humano com seu Criador. O que há de errado na teologia judaico-cristão aqui?
Jesus combateu a posse. Para ele é melhor dá do que receber. Quem compartilha imita a Deus. É mais fácil um camelo passar na cabeça da agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Mandou um jovem rico doar tudo aos pobres. Esta cosmovisão de Jesus contraria toda lógica de acumulação, posse e domínio que temos em nossa cultura. Para Jesus é: na dúvida fique com o pobre.
Existe na teologia algo que é chamado de “mandato cultural”. Em Gênesis 2 a humanidade recebe uma ordem de cuidar do jardim do Criador que é o mundo. Isto implica preservar o meio ambiente, consciência de sustentabilidade e proteção. Não há desvio de ensino da tradição tanto judaico quanto judaico-cristão defender estas pautas e exigir uma vigilância e fiscalização dos governos no que tange a isto.
Mas existem duas coisas que pegam neste debate: homossexualidade e aborto. Quando o tema veio com mais força para a discussão pública no governo de esquerda a imagem já estava pronta: é o diabo. Destruirão o Brasil e as famílias. Pastores e Padres serão obrigados a realizarem celebrações homo afetivos. A questão é que isto não estava na lei. É previsto na constituição a liberdade do culto e suas formas mais variadas. O foco era o tema dos direitos humanos que numa posição de minoria deveriam ter seus direitos garantidos pela constituição e pela lei como cidadãos. Somente isto. Direitos humanos este conquistado pela reforma protestante ao longo dos séculos e estabelecida em 1949. Lutar pelo direito de alguém não é romper com a fé ou o texto sagrado. O cristão conservador sabe que mentir é um pecado. Sabe que o pai da mentira é o diabo, ou seja, se mentir se torna filho dele. Suponha que uma pessoa esteja com a vida em perigo e alguém está atrás dela e esta pessoa bate em sua casa e você a esconde e quando o assassino bate a sua porta, porque ele está batendo na vizinhança toda, perguntando se ela está lá, você dirá o que? Sim ou não? O que vale mais? A vida ou manter o princípio? Será que Deus lhe chamaria de filho do diabo por que preservou uma vida mesmo mentindo? O que isto quer dizer é que lutar pelo direito de alguém é cristão.
Alguns acham que um ser humano para ser digno precisa ser alguma coisa além de ser humano. O ser humano é digno por existir. Como ele prefere existir, desde que a forma de existência não ameace a existência de outros, é problema dele.
O aborto é algo previsto pela lei brasileira. Um assunto muito delicado que envolve emoções, abusos, dores e dramas. Geralmente quem luta contra o aborto não adota a criança que deseja que fique em vida, mesmo que mãe e a família não tenham condições financeiras, emocionais, físicas de criar. Mas enfim, não quero ficar preso nesta lógica. Tendo todo este pano de fundo a lei em casos de estupro, riscos para mãe ou anencefálico um cristão emitir sua posição favorável não o faz um herege ou apóstata. Ele não é um abortista desenfreado que está tudo liberado.
Quando olhamos para a história do protestantismo no Brasil sempre houve uma aproximação dos pentecostais com as ideologias de progressistas. Os protestantes históricos tinham, mas eram mais moderados nas suas opiniões. Nas Igrejas Batistas (Hélcio da Silva Lessa, 1926-2009, e Darci Dusilek, 1944 – 2007) e Presbiterianas (Richard Shaull, 1919 – 2002, e Rubem Alves, 1933 – 2014) tivemos vários nomes de destaques. Mas o movimento pentecostal como a Igreja Brasil Para Cristo na representação do seu presidente e fundador Manoel de Mello (1929 – 1990) que fez a primeira aproximação dos evangélicos com a política isto em meados de 1962. A pauta era o pobre, negro, justiça, saúde e cura. Quando chega em 1964 com a ditadura o movimento evangélico, principalmente histórico faz uma transição e oferece apoio ao regime e de lá pra cá tudo que soa progressista é do mal e contra a “ordem e progresso”.
Mas o que diz na teologia conservadora? Por exemplo, para João Calvino (1509 – 1564) o sexto mandamento “não matarás” não é simplesmente tirar a vida de alguém. Calvino dizia que se para o ser humano viver ele dependeria do suor do seu trabalho para colocar o pão na mesa da sua casa e quando uma sociedade nega este pão, que é negando o trabalho e sustento, ela comete assassinato. Será que isto não soa progressista? Calvino orientou o governo em Zurique, Suíça, que destinasse uma verba aos pobres para tirá-los da condição de pedintes assim como também a igreja em que exercia o sacerdócio.
Outro personagem interessante é Abraham Kuyper (1837 – 1920). Foi pastor na Holanda e depois se tornou primeiro ministro Holandês. Este estadista lutou pelos direitos das mulheres para que tivessem direito ao voto, ganhassem o mesmo salário que os homens e tivessem sua carga horária de trabalho reduzida já que trabalhavam mais do que os homens.
É possível ser cristão e ser progressista? Sim, é possível. O cristianismo é herdeiro do carisma profético do hebraísmo antigo. Numa linguagem contemporânea este carisma profético nada mais é do que uma crítica social. Os profetas hebreus tinham uma espada afiada na boca que quando falavam eram insuportáveis para os reis tiranos e sacerdotes corruptos.
Portanto, ser um cristão progressista não significa pegar em armas para mudar o mundo, embora os puritanos tenham feito isto na Inglaterra para remover um déspota do poder, muito menos usar Karl Marx (1818 – 1883) para interpretar a Bíblia e nem se posicionar ideologicamente sobre um partido. O problema do conservadorismo teológico que faz uma ligação com o liberalismo capital engessou uma doutrina de que isto é a maneira correra de viver a fé cristã. A teologia conservadora de direita cai no mesmo erro que faz na crítica ao progressismo cristão: supervaloriza uma ideologia e faz dela uma doutrina a ponto de demonizar tudo o que é diferente. Lembremos que quando os credos e tratados teológicos foram criados não havia noção de direita e esquerda.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Christopher Marques é Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Psicanalista Clínico pela Faculdade Metropolitana de São Paulo. Professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina e membro do grupo Coalização Inter-Fé que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências. Autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja” (Editora Reflexão, 2015), “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” (Editora Fonte Editorial, 2017), “Quando a Vontade de Viver Vai Embora” (Editora Paulus, 2019) e “Deus fará maravilhas: Vivendo o poder do impossível diante das dores da vida” (Editora GodBooks, 2023).