SE EU “PUDESSE” FALAR COM “dEUS”.
“Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios (...)
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou (...)”
(GIL, Gilberto: Se eu quiser falar com Deus).
Se eu pudesse falar com “deus”, lembraria a ele os muitos “nós” que ele herdou após a ascensão do protofascismo à brasileira, encampado pelo movimento bolsonarista. Lembraria que há uma fenômeno mundial de desencanto com a democracia, de esgotamento do modelo participativo, representativo, catapultado pela aparente falta de respostas concretas aos dilemas que o mundo passou a viver. Recordaria que o neoliberalismo agravou esta situação, a partir do momento que resolveu salvar os privilegiados, elegendo os mesmos que o sistema já colocou no céu do capitalismo, os bilionários, virando as costas para o restante do globo.
Se eu pudesse falar com “deus” lembraria a ele que a hora não é a de comer o pão de queijo recheado com cheddar, mas sim de comer o “pão que o diabo amassou”, de digerir o “ovo da serpente” que foi gestado neste país. Pensando nisso é que seria de bom tom que a “divindade” política (alguém duvidaria disso, depois do sepultamento que sofreu, sendo enterrado vivo na PF de Curitiba, e ressurgido como chefe do executivo superando um candidato à reeleição?) focasse naquilo que é o bem-fazejo comum deste mandato, qual seja, a erradicação da fome neste país. O caminho da erradicação da fome, tema que une o país e isola os fascistas em sua bolha, precisa ser o carro chefe da publicidade governamental, visando assim aliviar os nós e superar a diabólica dieta, cujo ato de comer daquele “pão” é sempre precedido pelo sonoro “apito de cachorro”. É hora de distensionar o país, o que deveria ser traduzido na ênfase em pautas universais como, repito, o combate à fome, a melhoria da educação e da saúde pública, assuntos que já ocupam grande espaço no coração da “divindade”.
Se eu pudesse falar com “deus”, lembraria a importância da manutenção das conquistas sociais e identitárias, mas também que o momento político não parece ser propício ao avanço destas pautas. Sugeriria que o governo não entrasse na discussão de temas-tabu, o que esvaziaria a força da extrema-direita, asfixiando o fôlego da bancada que carrega o apito na boca, provavelmente redundando na sua diminuição na próxima eleição para o Congresso Nacional. Uma vez retomada a governabilidade pela continuidade deste governo em novo mandato, com um congresso mais sensível aos direitos humanos, tais pautas teriam condições de avançar. Em outras palavras: neste governo a luta deveria ser para garantir os direitos conquistados e não para tentar alavancar novos pleitos, por mais legítimos que sejam. Recordaria a ele que a extrema-direita se alimenta do oxigênio identitário: sendo assim, para diminui-la é preciso que haja habilidade para tornar o ar rarefeito.
Se eu pudesse falar com “deus”, reforçaria a necessidade de aproximação com evangélicos de boa cepa, com líderes que não são, necessariamente, influencers, mas que EXERCEM INFLUÊNCIA. A lógica evangélica não é igual a midiática. Prova disso é a sua eleição, presidente, bem como a orquestrada e sistemática tentativa de desqualificar as vozes que o apoiaram na campanha passada. Ora, se são tão insignificantes como as viúvas evangélicas de Bolsonaro dizem, por que o incômodo? Por que tanto fricote?
Se eu pudesse falar com “deus”, sugeriria a ele que posicionasse o vice-presidente, homem ponderado e sábio, como filtro do bom-senso deste governo. Talvez tal medida evitasse exposições e desgastes desnecessários, gerados pela abordagem, fora de hora, de temas polêmicos, bem como pela redação dúbia que, por vezes, é dada a eles em documentos oficiais.
Por fim, se eu pudesse falar novamente com esse “deus” diria a ele que espero que o final apoteótico da clássica composição de Gilberto Gil, que espetacularmente tem uma bela aplicação para a caminhada religiosa, não seja transmutado para o inverso do seu sentido original, quando aplicado ao atual mandatário do país:
“Se eu quiser falar com Deus (...)
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar, vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar.”
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. Contato: sdusilek@gmail.com