“Se é feminista, não é cristã”
“A família é muito importante no imaginário cristão. As pautas de pânico moral vão provocar angústias que envolvem as famílias. Por isso, o que vejo nesse movimento antifeminista é um movimento familista”, afirma Simony dos Anjos, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.
Foi assim que uma mulher que não conheço reagiu à publicação de um vídeo que fiz para o Instagram de Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero sobre o artigo “A infindável batalha das feministas cristãs” que escrevi para este Observatório Evangélico (link: http://bit.ly/3nK6o3a). Na mesma semana, recebi o vídeo com a campanha “Não Fale Por Mim – um vídeo em repúdio ao movimento feminista”, assinado pela igreja Povo da Cruz.
No vídeo, mulheres listam o que não querem que as feministas falem por elas: como se vestir, como encarar o cuidado da casa, do marido, dos filhos, da família. Repudiam o que chamam de militância e sobre a suposta imposição do aborto e de encarar a maternidade como um fardo. Mesmo que a igreja Povo da Cruz ainda não tenha o mesmo alcance midiático de outras igrejas mais conhecidas, o conteúdo se espalhou rapidamente nas redes sociais e tem potencial de arregimentar simpatizantes que não estejam nas igrejas, mas que se identifiquem com o conservadorismo. E tem potencial principalmente porque traz muitas mensagens construídas de maneira distorcida para transformar o feminismo no pecado da vez.
O vídeo é encerrado com a frase “O feminismo é incompatível com o cristianismo”. Logo me lembrei da minha interlocutora desconhecida de quem me apropriei do comentário para dar título a este artigo. Essa “demonização” do feminismo é algo que me intriga. Jesus deu grande protagonismo às mulheres e parecia não se importar em ter seu trabalho de proselitismo financiado por elas (Lucas 8:1-3). E todas as mulheres se beneficiam dos resultados da luta feminista: creches, equiparação salarial, delegacia das mulheres, entre outros. E não me parece lógico que as cristãs sejam contra essas conquistas. O que acontece, então?
Para entender um pouco essa aversão conversei com duas evangélicas feministas – Simony dos Anjos, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, e Valéria Vilhena, de Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero –, que me deram pistas interessantes: as mulheres que estão nas igrejas não repudiam as conquistas do feminismo. Elas repudiam a caracterização radical que foi feita do feminismo. Mas essa caracterização foi feita por quem? Pela liderança, inclusive a feminina.
“O cristianismo precisa de uma ameaça para defender. O feminismo, assim como o comunismo, foi construído como uma grande ameaça a valores fundamentais, como a noção de família”, diz Simony. Valéria concorda: “o antifeminismo dentro das igrejas é um sentimento plantado pelas lideranças, com desinformações e fake news, para gerar o preconceito contra as feministas”.
Simony argumenta que uma das ferramentas mais usadas pelas igrejas evangélicas para visibilidade é a produção de pautas de pânico moral. “A família é muito importante no imaginário cristão. Tanto que as igrejas se chamam de família. E, geralmente, as pautas de pânico moral vão provocar angústias que envolvem as famílias. Falar de aborto provoca a destruição das famílias. Falar sobre questões de gênero também. Por isso, o que vejo nesse movimento antifeminista é um movimento familista”.
Dentro das igrejas, o papel do cuidado é sempre direcionado à mulher. Essa visão de cuidadora é frequentemente repetida por lideranças evangélicas femininas como Damares Alves e Michelle Bolsonaro. Uma mulher cristã é valorizada por ser boa mãe, boa esposa e boa cuidadora da família. Por isso, tanto Valéria como Simony concordam: ao caracterizar o feminismo como um movimento antifamília, as lideranças têm a intenção de gerar conflito. “Com essa narrativa, parece que o feminismo está tirando o valor que a mulher evangélica tem”, acrescenta Simony.
Valéria comenta sobre um convite que recebeu para uma roda de conversa com mulheres de uma igreja evangélica. “O pastor me disse que eu poderia falar o que quiser, desde que não usasse a palavra feminismo. Foi uma conversa ótima, mas veja como há uma distorção, um preconceito, mesmo que tenhamos tratado de temas caros à pauta feminista, como a luta contra a violência doméstica e a busca por igualdade social, por exemplo”.
Nessa guerra de narrativas, as igrejas ainda estão ganhando pelo alcance midiático muito maior do que os grupos feministas têm. Criar pânico em torno da família é uma ferramenta de comunicação eficiente. O protagonismo da resposta dado às mulheres dentro da igreja produz engajamento e visibilidade. E amplia a disseminação do conceito equivocado de que feminismo e cristianismo não podem caminhar juntos.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.