Samba gospel: Chega Mais Pra Cristo regrava música de Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz
Em 1981, com 22 anos de idade, Zeca Pagodinho ainda sonhava em ser apenas um compositor. Sua voz, entoada nos pagodes do Cacique de Ramos e em outras rodas como a de Arlindo Cruz em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro, servia apenas para defender as suas composições diante de um público rigoroso. A história acontecia ali de frente para aquela rapaziada: o pagode à la Cacique, com repique de mão, tantan e banjo, despontava como aquele capaz de dar novos ares ao samba.
Aquele Zeca, compositor tímido, emplacou em 1981 a primeira de suas composições em uma gravação. Junto com seu compadre Arlindo, teve sua música “Dez Mandamentos” gravada pelo sambista soteropolitano Walmir Lima. Ainda sem a inovação do samba do Fundo de Quintal, o disco tem o feito de reunir a primeira composição de Zeca e Arlindo, além de bambas como Almir Guineto e Noca da Portela.
43 anos depois, a composição de Zeca ganha outro colorido com a gravação do grupo Chega Mais pra Cristo, que tem sido linha de frente na mistura entre samba e os evangélicos. A despeito de cantar sambas autorais, o carro chefe do grupo tem sido dar uma nova roupagem, com batucada, a louvores já conhecidos pelo público brasileiro.
O grupo Chega Mais Pra Cristo começou em 2007 sob as asas da igreja Ministério Apascentar de Nova Iguaçu. O grupo hoje acumula milhões de visualizações nas plataformas e possui a seguinte formação: Artur Felipe (banjo), Jorge Paulino (tantã), Alexandre Rodrigue (pandeiro), Junior Luiz (cavaco e voz), Thiago Costa (violão), Bianca Magalhães (voz), Hudson Souza (reco-reco), William Gelli (surdo) e Arthur Cruz (voz).
Com arranjo do também evangélico Mauro Diniz, filho do portelense Monarco, a canção “Dez Mandamentos” ganhou uma nova cara, com direito a arranjo de metais, convenções que marcam a cadência e um samba pé no chão, sem enfeites e firulas, como se fosse à moda antiga. A participação de Zeca na canção vem certamente conceder legitimidade ao grupo.
Nas redes do Chega Mais Pra Cristo, é possível observar comentários que questionam a mistura entre os evangélicos e Zeca Pagodinho, já que este tem uma relação íntima com as religiões afrobrasileiras. Também encontramos comentários que visam denunciar supostas heresias na letra da canção.
Vale lembrar, em primeiro lugar, que o mundo do samba é formado por uma rede de solidariedade e fidelidade entre os seus membros - o sambista evangélico, mesmo convertido, não abandona por completo a sua fidelidade ao samba e aos amigos do samba, mas a redefine a partir de uma nova hierarquia de valores morais, através da conversão evangélica. Assim, Zeca Pagodinho é visto como um irmão e a unidade dos sambistas em prol da defesa do gênero não é deixada de lado.
Segundo, é preciso observar os deslocamentos de sentido que uma canção pode sofrer quando transportada para outros nichos de produção e audição: assim, o verso “vem de novo e traz a salvação” é reinterpretado segundo uma gramática conversionista que visa evangelizar pessoas através do samba. O tom de denúncia das mazelas do mundo culmina com o desfecho: “vem à Terra outra vez, dar amor e dizer os seus dez mandamentos.” Há aqui um deslocamento claro de sentido que passa a apelar escatologicamente pela volta de Cristo.
Por último, é interessante perceber como as fronteiras entre o sagrado e o secular - que, no Brasil, tem sido delimitadas pela “cultura gospel” - não são fixas e estão em constante mudança. O collab entre Chega Mais Pra Cristo e Zeca Pagodinho remelexe a corda bamba que é a definição de gospel-sagrado, sugerindo o alargamento de suas fronteiras e a inclusão de novos atores para a cena, tudo à serviço da evangelização.
A novidade do samba gospel não é a já ancestral relação entre samba e religião, mas a entrada de novos atores na cena que são capazes de transformar a gramática do samba e construir novos laços de sociabilidade e invenção de mundo a partir do ritmo. O samba gospel já é uma realidade. E Zeca Pagodinho, como sempre, foi hábil em perceber isto.
Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.