Religião, infância e racismo: Reflexões sobre violência estatal e Direitos Humanos no Brasil
No último domingo, um jovem de 13 anos foi baleado pela polícia durante uma ação da Política Militar na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Não é a primeira vez e infelizmente não será a última que a polícia age de forma truculenta em espaços marginalizados pela sociedade.
A justificativa: combater a violência. Porém, o que vemos são agentes do Estado produzindo violência contra sua própria população, matando inocentes em uma mórbida e ineficaz tentativa de trazer segurança e diminuir a criminalidade.
As vítimas: crianças negras e periféricas. O silêncio daqueles que tanto reinvidicam a defesa da infância é ensurdecedor. Será que os bons cristãos utilizam a defesa dos direitos das crianças em nome da religião apenas em momentos oportunos? A mesma pergunta é feita direcionada àqueles que tanto levantaram a bandeira da defesa dos Direitos Humanos.
Damares Alves ficou conhecida nos últimos anos por defender a família e a infância, sempre trazendo sua religião como elemento legitimador de seu caráter. Por diversas vezes fez discursos afirmando o quanto ela se preocupava com as crianças brasileiras e o quanto esta era sua bandeira. Porém, em nenhum momento Damares se pronunciou acerca da morte do garoto. O mesmo podemos dizer sobre Michele Bolsonaro e tantos outros atores evangélicos que se utilizaram da defesa dos direitos das crianças para se promover.
Bolsonaro mais de uma vez afirmou concordar com a frase “bandido bom é bandido morto”, assim como muitos de seus eleitores, inclusive a ala conservadora da Frente Parlamentar Evangélica. Mas a pergunta que devemos fazer aqui é: quem são as pessoas que o Estado vê como bandidos?
Muitos destes atores não utilizam a ideia dos Direitos Humanos para falar sobre direitos das crianças, porém, afirmam que são “contra a ideologia de gênero nas escolas” ou “a favor da família”, e isso também poderia ser compreendido como defesa dos direitos humanos, em uma clara disputa do sentido do que é Direitos Humanos.
Mas quais crianças devem ser protegidas?
Se o Estado deve proteger a família, porque então está matando crianças? E porque os defensores da família não estão mobilizados por esta causa?
Em uma sociedade que mata suas próprias crianças, é muito difícil defender os direitos das crianças sem pensar na racialização e marginalização da população negra.
A partir disto podemos também inferir uma segunda questão que me parece bastante importante para entendermos o Brasil atual: se o próprio Estado mata suas crianças, como a população irá confiar neste Estado? Se agentes públicos que representam a política brasileira, entra em bairros periféricos e atira nas pessoas, é impossível que essas pessoas sintam confiança e proximidade com o Estado, assim como não se sentem representadas e nem protegidas, uma vez que não fazem parte da “família” que é acionada quando se trata de direitos da população.
É também por este motivo que muitas pessoas preferem confiar na igreja do que no Estado. Preferem recorrer a ajuda de instituições religiosas de seus bairros do que na ajuda do Estado. Se sentem mais acolhidas por grupos de oração do que em projetos políticos que em grande maioria não conseguem alcança-los.
Nesse sentido é impossível falar de Direitos Humanos sem falar de raça e de classe, e em se tratando do Brasil, também sobre religião.
A relação entre infância, racismo e religião são fundamentais para se pensar uma sociedade democrática. Não há como se falar de democracia em um país que a polícia mata crianças. Assim como não se pode chamar de Estado democrático um órgão que seleciona quem deve viver ou morrer, este tipo de gestão do Estado foi definido por Necropolítica pelo filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe.
Os Direitos Humanos é mesmo para todos? A defesa da família abrange todas as famílias? A defesa dos Direitos das crianças engloba todas as crianças? Qual é o papel da religião diante destes desafios?
São questões importantes para pensar qual Brasil nós queremos, e qual é o futuro e o sentido da política em um país atravessado pela colonialidade, pela violência e pela desigualdade.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Manuela Löwenthal é Doutoranda em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora do projeto Temático "Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo", financiado pela FAPESP. Atua também como Professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.