Racismo, misoginia, machismo são preconceitos que se retroalimentam
Mulheres EIG em Campina Grande (PB) e de demais territórios tornam público o seu descontentamento com a organização do Congresso Evangélico, evento promovido pela Visão Nacional para a Consciência Cristã (VINACC) – que se iniciará nesta semana, entre os dias 08 a 13 de fevereiro. Vale destacar que com natureza jurídica como associação privada, cuja classificação de principal atividade econômica tem destinação para a defesa de direitos sociais, a VINACC aglutina ao seu redor lideranças representativas de algumas denominações evangélicas brasileiras e promove conjuntamente ao evento a FELICC - Feira do Livro da Consciência Cristã.
Ao cancelarem a participação de preletor, cujos textos e ideias justificam e amenizam a ideia da escravidão na história dos Estados Unidos e do mundo ocidental, se utilizando da tradição cristã reformada e da Bíblia, os organizadores do evento o fizeram inicialmente apenas sob a pretensa justificativa da questão de segurança do convidado, demais preletores e participantes do evento. Evocaram, contudo, convenientemente o risco de crime de ódio, a Constituição Brasileira, a defesa dos direitos humanos, a ideia da liberdade religiosa, da laicidade do Estado ao mesmo tempo em que também alegaram perseguição religiosa. Escamoteando o debate, entretanto, de forma alguma se atentaram à gravidade do problema cerne da questão e atenuaram a enxurrada de questionamentos e críticas.
Lamentamos veementemente que a organização do evento tenha se abstraído de fazer uma autocrítica profunda, necessária e urgente pela ideia de convidar e sustentar a participação de um preletor desprestigiado por demais ideias polêmicas diante da sociedade americana, bem como promover e incentivar que o mesmo preletor tenha seus livros e ideologias propagadas por aqui no que toca aos temas que tangenciam a suspeita educação via homeschooling, de feminilidades, criação e educação de crianças, de masculinidades (tóxicas, é preciso pontuar), dentre outras. É lastimável saber que o cancelamento de tal preleção (divulgado amplamente em vídeo) apenas se deu após reportagem escrita pelo teólogo e ativista antirracista Ronilson Pacheco (Intercept Brasil, 16 jan 2024) e diante de um dilúvio de críticas de variados setores da sociedade brasileira, dentre eles parte da seara significativa de lideranças do contexto cristão evangélico, que por si só e como em toda a história do cristianismo, é multifacetada e diversa.
É válido destacar que o referido pastor norte-americano Douglas Wilson não só é criticado por suavizar o tema da escravidão, mas como conselheiro pastoral, amenizou e ocultou escandalos sexuais e de violência contra mulheres de membros de sua comunidade e em outro caso, pleiteou a diminuição de pena de caso julgado na corte americana de um p£dófil0 incurável. A informação sobre algumas dessas ocorrências trágicas e violentas, bem como os seus devidos contextos e divergências da organização, foram publicamente dadas incluindo parte dos bastidores do próprio Congresso Evangélico - 2024, em reportagem do jornal Paraíba Já (18 jan 2024), com a informação de que a atual mesa diretora do mesmo fora devidamente questionada sobre a referida participação com alguma antecedência..
Sim, racismo, misoginia e machismo caminham juntos. O mesmo evento conta com vários outros preletores homens para pautar e discutir temas de base ideológica assentadas na perspectiva da extrema direita mundial e político/conservadora da mesma. O protagonismo das mulheres é quase nulo. E como se o avultamento dessa relação não fosse ainda suficiente, alegando a cultura do cancelamento, em “Uma palavra ao bom povo do Brasil”, carta de Douglas Wilson publicizada por aqui a pedido da direção do próprio Congresso Evangélico (17 jan 2024), essa toxicidade, embora ‘diluída’ entre citações de vários versículos bíblicos convenientemente soltos e recortados, é levada para outros patamares com 1) sinalização expressa e direta da recusa em pedir perdão; 2) uso ardiloso de tom irônico diante de tema tão violento na história da humanidade; 3) do apelo ao trágico mecanismo da polarização de diferentes vertentes do cristianismo brasileiro que tanto mal causou em nossas relações afetivas enquanto igreja, família, sociedade, nas relações de amizades, etc.; 4) da marcada discriminação de gênero; 5) da deslegitimação das qualificações editoriais de especialistas que relataram o teor da questão; 6) do desmerecimento das opiniões de demais outras lideranças evangélicas que levantaram a necessária discussão e 7) diante do desprezo da repercussão de tais notícias em redes sociais e afins.
Quase todos esses são subterfúgios comumente usados por Douglas Wilson diante de suas conhecidas polêmicas no contexto da comunidade Christ Church em Moscow. Idaho - USA conforme noticiado, p. ex., por meio do The American Conservative, em postagem intitulada Scandal in Moscow: Sex abuse and denial in pastor Doug Wilson's church communities, autoria de Rod Dreher (19 set 2015). Outras importantes fontes de consulta sobre tais polêmicas são encontradas no documento produzido por Rachel L. Shubin em Analyzing Douglas Wilson’s Handling of the Steven Sitler and Jamin Wight Cases (2016). Há algum tempo, mesmo o conservadorismo norte-americano já sustenta críticas severas e faz o apelo pelo afastamento ao pastor Douglas Wilson.
Enquanto Mulheres EIG estamos atentas e vigilantes e nos colocamos à disposição continuamente para denunciar o mau uso e a manipulação da linguagem religiosa. Nos posicionamos contra todas as formas de injustiças às quais cotidianamente retroalimentadas em torno de seus próprios eixos, se tornam as alavancas do sistema econômico hegemônico – máquina de promover a desigualdade social e desacreditar a nossa democracia. Diante deste contexto e pela vida em abundância para todas, todes e todos, que nos deixamos ser guiadas pelas palavras de Jesus, o Cristo nazareno, palestino, preto e pobre e nelas encontramos inspiração e alento para continuar, pois: “Mulher, grande é a sua fé!”. Mt 15:28
E como aspecto inerente de nossa condição em sermos Mulheres EIG sobre a lógica tripartite de nossa permanente e atenta caminhada, quais sejam, a formação continuada, da vigilância do controle social e incursões políticas, deixamos nesse espaço uma sugestão de leitura para que não se esqueça o quanto, trágica e concomitantemente, a tradição cristã reformada esteve imersa com o sistema colonial e da escravização de gentes pelo mundo afora. Um recorte desse cruel e mortífero sistema colonial nos é apresentado pelo célebre Coroas de glória, lágrimas de sangue – a rebelião dos escravos (sic) em Demerara, da historiadora Emília Viotti da Costa (1998). Não podemos cometer os mesmos erros do passado. A mensagem dos Evangelhos de Jesus Cristo não pode ser manejada e usada para promover a tragédia humana. Nunca!
Associação Mulheres EIG - Evangélicas pela Igualdade de Gênero
Fontes:
CARMO, Wendal. Pastor dos EUA que justifica escravidão com a Bíblia virá ao Brasil para congresso evangélico. Carta Capital, 16 jan 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pastor-dos-eua-que-justifica-escravidao-com-a-biblia-vira-ao-brasil-para-congresso-evangelico/. Acesso em 20 jan 2024.
PACHECO, Ronilson. Congresso Evangélico trará ao Brasil pastor americano que defende escravidão. Intercep Brasil. 16 jan 2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/01/16/congresso-evangelico-consciencia-crista-trara-pastor-douglas-wilson-defensor-da-escravidao/. Acesso em 20 jan 2024
CAVALCANTE, Iluska. Escravidão e pedofilia: saiba quem é Douglas Wilson, pastor cancelado da Consciência Cristã. Paraíba Já. 18 jan 2024. Disponível em: https://paraibaja.com.br/escravidao-e-pedofilia-saiba-quem-e-douglas-wilson-pastor-cancelado-da-consciencia-crista/. Acesso em 20 jan 2024
WILSON, Douglas. Uma palavra ao bom povo do Brasil. 17 jan 2024. Disponível em: https://monergismo.com/uma-palavra-ao-bom-povo-do-brasil/. Acesso em 23 jan 2024.
DREHER, Rod. Scandal in Moscow: Sex abuse and denial in pastor Doug Wilson's church communities. The American Conservative. 29 set 2015. Disponível em: https://www.theamericanconservative.com/scandal-in-moscow/. Acesso em 23 jan 2024.
SHUBIN, Rachel L.. Analyzing Douglas Wilson’s Handling of the Steven Sitler and Jamin Wight Cases (2016). https://www.moscowid.net/wp-content/uploads/2016/09/Analyzing-DWs-Response-to-Sitler-and-Wight-Cases.pdf. Acesso em 22 jan 2024.