Quanto vale a vida das meninas e mulheres para as igrejas?
Escrevo o texto no momento em que o país inteiro discute o PL 1904/2024, conhecido como “PL do Estuprador” ou “PL do Estupro” que contradiz um princípio civilizatório básico; o de que “Criança não é mãe” e “Estuprador não é pai!”.
Dentre as inúmeras políticas de crueldade sugeridas e implementadas desde o período da COVD-19 esta, sem dúvidas, ultrapassa todas escalas de maldade. Proposta por um conjunto de parlamentares, mulheres e homens, liderados por Sóstenes Cavalcante, todas pessoas, orgulhosamente cristãs, evangélicas, católicas romanas e espíritas, o PL teve o seu requerimento de urgência aprovado, em 23 segundos, na tarde quarta-feira, 12.06.2024, no Plenário da Câmara dos Deputados.
Ingênuo quem pensa que, os dias que antecederam a tramitação do caráter de urgência, não foram marcados por lobby religioso para que o PL tramitasse da forma como tramitou, sem discussão. Padres e pastores do país inteiro ligaram para parlamentares da base opositora ao atual governo reforçando a importância da aprovação. Chama a atenção que alguns parlamentares, não tão convictos em relação ao que o PL 1904/2024 propõe, foram coagidos pela Bancada Ruralista para votar pela aprovação do caráter de urgência do tal PL. Estranha combinação esta: religião aliada com quem defende a ampliação do uso de veneno, que por sua vez, contamina o leite materno e é responsável por causar aborto espontâneo em mulheres que querem muito ser mães. Estranha combinação é ainda o fato de que históricos defensores e defensoras da liberação de armas, defendam o direito do nascituro, quando suas armas assassinam crianças que estão indo para a escola, brincando nas ruas ou passeando com seus familiares. Entre janeiro a agosto de 2023, somente na região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, 24 crianças e adolescentes foram mortos por armas de fogo.
Lembremos que o tema central do PL não é a interrupção da gestação, mas sim, o endurecimento da punição de meninas, mulheres e profissionais da saúde que realizarem procedimentos de aborto previsto em Lei. Segundo o texto proposto no Projeto de Lei 1904/2024, uma menina ou mulher que sofreu o crime hediondo do estupro e realizar o aborto poderá ser condenada a uma pena superior à do estuprador. Para os autores e as autoras do PL 1904/2024, o aborto seria equiparado ao homicídio simples. O Código Penal brasileiro prevê, em seu artigo 121, uma pena mínima de seis anos e máxima de dez anos para quem pratica o crime hediondo de estupro. Os autores e autoras do PL 1904/2024, querem que uma menina ou mulher, que interrompe a gravidez, após a 22° semana, seja encarcerada entre seis a vinte anos. Ou seja, ela será penalizada tanto por sofrer o estupro, quanto por acessar um direito que é garantido em Lei.
Este PL nos remete ao texto bíblico de Deuteronômio 22. 22-29. Neste texto está descrito como proceder, desde a perspectiva da Lei da época, em casos de estupro. No texto bíblico são descritas várias situações e indicadas as penalidades. Caso número um: se um homem deitasse com uma mulher casada: ambos seriam mortos. O homem por ter se deitado com a mulher casada e a mulher por ter traído o marido. Caso número dois: se uma jovem e virgem, prometida a um homem, se deitasse com outro homem, que não o prometido: ambos deveriam ser levados aos portões da cidade e apedrejados até a morte. O homem por ter se deitado com a prometida e a jovem por não ter gritado por socorro. Caso número três, se um homem encontrasse uma jovem prometida em um campo, a violentasse e se deitasse com ela, morreria somente o homem que se deitou com ela. Neste caso, levanta-se a possibilidade de não punição da mulher porque ela poderia ter gritado e não ter sido escutada. Caso número quatro: se um homem encontrasse uma jovem virgem que não estivesse prometida, a agarrasse e se deitasse com ela e fosse pego em flagrante, o homem que se deitou com a jovem deveria dar ao pai da jovem cinquenta moedas de prata, e ela passaria a ser a mulher do abusador, que não poderia mandar a mulher embora durante toda a sua vida.
Por que o PL 1904/2024 remete a este texto? Porque em todas as situações a mulher é vista como um objeto desprovido de humanidade. Ela só não será condenada se estiver prometida a outro homem. Neste caso, o que interessa não é a vida da mulher, mas o prejuízo que o pai poderá ter. A vida da mulher vale, segundo o texto, no máximo, 50 moedas de prata.
Para os autores e autoras do PL 1904/2024 e para muitas igrejas, quanto vale a vida de meninas e mulheres?
A mesma pergunta pode ser feita aos partidos políticos, do centro, da direita, da extrema-direita e da esquerda. Quanto vale a vida das mulheres? Sabemos que em períodos eleitorais, todos os partidos correm para as igrejas e fazem negociações em troca de votos. O centro da negociação é sempre o tema do aborto. Nas eleições municipais, certamente, esta será também a moeda de troca. Vote em mim e eu garanto que não se aprovará mais nada em relação ao aborto legal e seguro. Vote em mim e eu te concedo canais de televisão, rádios, privilégios com convênios, isenção de impostos e, ainda garanto, retroceder nas políticas de direitos sexuais e reprodutivos.
Não somos tolas, sabemos que é assim que acontece.
O PL 1904/2024 não tem relação com a defesa do direito à vida do não nascido. Estes parlamentares não estão preocupados com a gestação, pois se estivessem, garantiriam o acesso com qualidade às políticas de pré-natal, apoiariam as famílias cujas crianças nascem com doenças graves e necessitam medicação cara, não aprovariam os venenos que contaminam o leite materno e os alimentos e que provocam abortos espontâneos, não aprovariam armas que assassinam mulheres. No ano de 2023, 1463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, isso significou um aumento 1,6% em relação ao ano de 2022.
Todos estes parlamentares que elaboraram e aprovaram o caráter de urgência do PL 1904/2024, tampouco estão preocupados em defender a infância, pois são todos adeptos ao sionismo cristão que justifica o genocídio em Gaza que já assassinou mais 14.500 crianças. O genocídio em Gaza torna um inferno a vida das aproximadamente 50 mil gestantes palestinas que dão à luz sob as condições mais desumanas possíveis. A ausência de condições para dar à luz, muitas vezes, conduz à morte os recém-nascidos. O PL 1904/2024 não defende a vida, mas a morte. Este PL não é sobre o aborto, mas sim, sobre criminalizar meninas e mulheres.
Se alguém se deu ao trabalho de ler a justificativa para o PL, verá que ela se dá com argumentos falaciosos, sem qualquer compromisso com os fatos e com a realidade. Todo o texto é uma diatribe para atacar os movimentos de mulheres e profissionais da saúde.
É urgente que que as igrejas não ajam como partidos políticos e nem partidos instrumentalizem igrejas para rifar os direitos das mulheres. O Brasil está optando por um caminho nefasto para a vida de meninas e mulheres. Os cumplices da violência institucional contra meninas e mulheres são todos aqueles que que proíbem um debate sério e aprofundado sobre os direitos sexuais e reprodutivos para seguir com sua sanha misógina.
Criança não é mãe” Estuprador não é Pai! Basta de hipocrisia e cinismo políticos e religiosos!
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.