Quando são as mulheres que usam a palavra de Deus para perpetuar preconceitos, exclusões e violências

Quando são as mulheres que usam a palavra de Deus para perpetuar preconceitos, exclusões e violências

É sobre os ombros das mulheres que se sustentam os pilares das igrejas cristãs. Não importa a denominação, se é católica ou de matriz protestante, lá estão elas majoritariamente ocupando os bancos dos locais de missas ou cultos. Mas, isso não significa que elas sejam acolhidas de fato quando buscam apoio ou proteção para além do conforto espiritual. O que acontece de errado, as violências que podem vir dos pais ou dos maridos que também frequentam o mesmo espaço religioso, é sempre resultado do comportamento de quem sofre. E, infelizmente, o julgamento muitas vezes vem de outra mulher.

Às vezes, a mensagem é subliminar. Quem não se lembra do clipe “A Voz”, da cantora gospel Cassiane, em que uma mulher pena nas mãos do marido alcoólatra e violento, mas que depois se regenera? O milagre vem quando, a esposa de joelhos, cheia de marcas roxas pelo corpo, clama com fé pela mudança. E o marido se transforma após ler o bilhete deixado dentro da Bíblia: “Reconheça a voz de Deus. Deixa ela (sic) estremecer o seu coração. O timbre santo do Senhor há de te curar, pois Ele é a voz que restaura a vida. Oro por você. Perdoo você”.

Depois da repercussão negativa, Cassiane e seus produtores mudaram o vídeo (o original ainda pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=KOnS2sOjkO8) e em vez da resignação completa, mostra a esposa agredida ligando para o 180, telefone da Central de Atendimento à Mulher. Mas a mensagem continua na imagem da conversão do homem, possível porque a mulher teve fé na mudança e na voz potente da cantora.

Nada sutil foi a fala recente da vereadora Zirleide Monteiro (PTB), do município pernambucano de Arcoverde. Usando a plenária da Câmara Municipal, fustiga outra mulher por quem teve alguma desavença e que é mãe de um rapaz de 18 anos com Transtorno do Espectro Autista. Com o dedo em riste, exala preconceito em tom profético contra pessoas com deficiência e mães que lutam por atendimento digno e inclusão para suas filhas e filhos: “Não preciso citar o nome da cidadã, que o castigo de Deus, Ele dá aqui em vida. Quando ela veio com um filho deficiente, é porque ela tinha alguma conta a pagar com aquele lá de cima. Ela já veio para sofrer”.

A Bíblia da nobre vereadora parece não ter o Evangelho de João – Enquanto Jesus caminhava, viu um homem que era cego de nascença. “Mestre”, perguntaram-lhe os discípulos, “por que foi que este homem nasceu cego? Por causa dos seus pecados ou por causa dos pecados de seus pais?”. “Nem uma coisa nem outra”, disse Jesus, “mas para nele se mostrar o poder de Deus” (João 9: 1-3). A situação ficou tão constrangedora que o presidente da Câmara, Wevertton Siqueira (Podemos), usou o microfone para pedir desculpas “a todas as mães que têm um filho deficiente aqui em Arcoverde, em Pernambuco e em todo o Brasil”.

Bem mais ostensivas são as ações da deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ). Jovem advogada, a católica Tonietto encabeça uma cruzada moral pela criminalização da interrupção da gravidez em qualquer circunstância, mesmo aquelas que já são previstas em lei: gestação resultante de estupro, risco de morte para a mãe ou anencefalia do feto. Em minha coluna anterior, tratei da iniciativa da deputada em ressuscitar o Estatuto do Nascituro. Agora ela conseguiu pautar na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados a apreciação do Projeto de Lei 4150/2019, de sua autoria.

Com ele, Tonietto quer instituir a “personalidade civil dos fetos desde a concepção”. Se aprovado, na prática o projeto pode, inclusive, impedir que hospitais ministrem a pílula do dia seguinte a mulheres estupradas. As propostas são sempre para penalização da vítima, nada contra os agressores. A comissão que irá apreciar o projeto da deputada é a mesma que aprovou o projeto de lei que proíbe o casamento entre pessoas LGBTQIA+.

A justificativa de projetos semelhantes apresentados por parlamentares conservadores é sempre a mesma: a Bíblia condena. No entanto, segundo a biblista argentina Mercedes García Bachmann, a escritura sagrada do cristianismo não tem um versículo sequer que ateste que a vida se origina a partir da concepção. Segundo Bachmann, nem mesmo o nascimento fazia da criança uma pessoa ou “personalidade civil” como prefere Tonietto.

Em seu artigo “Reflexión sobre la legalización del aborto desde una perspectiva bíblica, luterana y feminista”, a biblista diz que na antiga Israel, o nascimento de uma criança não fazia dela um filho ou filha. “Era necessário um reconhecimento por parte do pai de seu status filial”. Se tal reconhecimento não ocorresse, a parteira poderia ficar com a criança recém-nascida e decidir seu destino, que poderia ser “criá-la, entregá-la para adoção, matá-la, vendê-la ou expô-la aos elementos para que morresse”. Bachamann continua: “o bebê também poderia ficar na casa de seus pais biológicos com status inferior ao de um filho. Às vezes, a família materna assumia o controle, mas em outros casos o recém-nascido era simplesmente eliminado” (tradução minha).

As interpretações conservadoras de determinados trechos bíblicos, soltos e sem contextualização ainda deverão deixar as mulheres sozinhas na busca de apoio ou de reconhecimento de seus direitos. Mesmo que as palavras e ações de Cristo tenham sido de acolhimento e inclusão, o Cristianismo ainda contribuirá em muito para a opressão feminina. E a tal da sororidade, conceito feminista para acolhimento, empatia e cooperação entre as mulheres, vai continuar passando longe.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.