Quando perdemos um amigo de Deus
Este texto não é um necrológio. Ele é um registro, uma homenagem sobre um tipo de pastor que era muito comum no meio evangélico, porém que corre o risco de entrar na lista daquelas "espécies" em extinção. Especialmente quando vemos o MEC do atual governo seguindo chancelando os diplomas de uma formação teológica fundamentalista oferecida em faculdades confessionais, notadamente evangélicas.
Já estive em muitos funerais. Já conduzi muitas cerimônias fúnebres. Depois de um tempo, como pastor, você descobre que há certos textos bíblicos que são recorrentes nesses momentos. Uma espécie de lugar comum dentro da riqueza bíblica.
Nesta segunda dia 25/11 estive em mais um velório. Agora, de um homem de Deus como poucos. Conquanto não tenha oficiado o velório, me peguei imaginando qual texto usaria, caso pregasse. E aqui está o santo problema: quando estamos nos despedindo de um homem de Deus, parece que quase toda a bíblia se aplica. A dificuldade não é explicar um texto; é escolher.
Normalmente, especialmente no caso do falecimento de um líder, como é o caso de um pastor, a fala de Davi é lembrada, por ocasião da morte de Abner, general do exército da casa de Saul, quando disse: "hoje caiu um príncipe da casa de Israel".
Mas não caberia, no caso do pastor Francisco Pena, essa citação. Príncipes são reverenciados, mas não deixam saudades. Amigos deixam saudades.
Talvez o melhor texto para uma ocasião tão sofrida como esta seja o de João 15.15, quando Jesus chamou seus discípulos de amigos.
Amigos de Jesus marcam e deixam santas marcas. Amigos de Jesus curam, mesmo quando doentes. Amigos de Jesus amam. Amigos de Jesus cuidam e protegem as crianças. Amigos de Jesus deixam saudades.
Assim eu via pastor Francisco Pena: um amigo de Jesus. Assumiu uma querida igreja, fincada em uma violenta comunidade do Rio, em um momento histórico turbulento. Com sua firmeza e mansidão, com sua devoção, inspirou a igreja a virar a página. Foi instrumento do Senhor para lembrar a igreja que as melhores páginas de sua história ainda não foram escritas. Ele que esteve no início, na formação daquela comunidade de fé, a mesma onde foi realizado seu concílio de ordenação pastoral, tinha voltado para ser seu pastor. E que pastor!
Em seu culto fúnebre, uma comunidade parou para a despedida. O Espírito Santo consolador desceu sobre a igreja na hora que sua nora cantou, homenageando. Neste momento, a certeza, mais do que a intelecção de que vamos rever pastor Francisco, foi colocada como paz sobre todos e todas.
O mundo não precisa de príncipes. O Reino de Deus, esta expressão que como outras aponta para a limitação da linguagem ao falar do que é do Eterno, não é monarquista. O Reino de Deus é a expressão plena do que é a amizade.
Em tempos de descompensamento pastoral por conta do fundamentalismo e seus arroubos teocráticos, fará falta um homem do equilíbrio emocional e teológico como o nosso pastor tão bem espelhou. Nunca permitiu que escolhas políticas sobrepujassem o amor e a paz que, a partir de Jesus, deveriam nortear as relações. Uma inspiração em tempos de ar rarefeito.
O mundo não precisa de príncipes. O mundo precisa de amigos de Deus. É por isso que o passamento de um pastor do quilate de Francisco Pena é custoso. A morte dos santos é preciosa, como lembra o salmista, porque ela custa. Justamente quando diamantes lapidados é que eles nos deixam. Ao fazê-lo, fica um buraco nesse mundo. Homens como ele fazem (e farão) falta.
Rip pastor Francisco Pena. Obrigado pelo seu legado.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e Co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.