Quando interessa aos políticos, ONGs religiosas são tudo de bom

Quando interessa aos políticos, ONGs religiosas são tudo de bom

A campanha eleitoral para a Prefeitura já está nas ruas. Aqui em São Paulo, um tema será certo no debate: a cracolândia. E quem quer apostar comigo que vários candidatos – independente se forem de esquerda ou de direita – vão apresentar as seguintes propostas: “vamos chamar as igrejas para conversar”, “as comunidades terapêuticas religiosas é que dão resultado”, “não há como combater esse mal sem as igrejas” e outras frases com o mesmo teor?

As igrejas, no caso, são ONGs ou Organizações Sociais (OS) religiosas. E, sim! Essas entidades já permeiam todos os atendimentos públicos de saúde e assistência social. Inclusive o São Camilo que agora aparece frequentemente na imprensa por ter negado a implantação de um dispositivo intrauterino (DIU) em uma paciente de uma das unidades privadas do grupo, alegando que isso vai contra suas diretrizes de instituição católica. Não se tem notícia se nas unidades de saúde municipais gerenciadas pela Sociedade Beneficente São Camilo alguma mulher foi orientada a não usar qualquer método contraceptivo e focar apenas no “crescei e multiplicai-vos”.

Então, quando interessa, ou a depender da narrativa (para usar um termo da moda) da vez, as ONGs e OS religiosas são tudo de bom. Há uma explicação para isso. Nesses meus pouco mais de dez anos de pesquisas acadêmicas nos territórios de uso de drogas conhecidos como cracolândias, não houve um dia sequer que eu não encontrasse missionários, religiosos, padres ou voluntários dessas instituições levando algum tipo de conforto espiritual ou material para seres humanos que estão doentes, mas que são tratados pelo poder público como o lixo que deve ser varrido das ruas.

E por conta disso, o trabalho dessas organizações foi incorporado aos programas de atenção à dependência química, tanto do Estado quanto da Prefeitura. Contratadas via edital, operam o que é apresentado como política pública. Há acertos e erros, já comentei aqui neste Observatório Evangélico anteriormente. Mas, é o que temos para o momento. Tudo indica que nesta eleição municipal acontecerá o mesmo que na campanha passada, quando candidatos defenderam a manutenção do modelo nas suas propostas.

Basicamente nada é falado em uma política pública multidisciplinar, abrangente e inclusiva. Apenas a religião parece bastar para um problema tão complexo. Querem um exemplo? No debate realizado pela TV Band, em 1° de outubro de 2020, a ex-deputada federal e ex-bolsonarista Joice Hasselmann (que concorreu pelo PSL), falou que levaria o trabalho das igrejas, tanto evangélicas quanto católicas na cracolândia para dentro da Prefeitura e chegou a citar rapidamente o exemplo da Cristolândia. Outros candidatos a prefeito pegaram carona do conceito de parcerias com as igrejas, como o atual ministro do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, Márcio França (PSB), e Filipe Sabará (que concorreu pelo Novo, mas acabou sendo expulso do partido) e que foi secretário de Desenvolvimento Social da Prefeitura e do Governo do Estado.

Mas, quando interessa, e quando não se consegue capitalizar as ações como marketing político, o trabalho das instituições também é atacado. Não foram poucas as tentativas de impedir o trabalho de grupos na distribuição de marmitas, por exemplo. Inclusive durante a pandemia de covid-19. A Rede Social do Centro, Cristolândia, Ação Retorno, Missão Belém, só para citar alguns, já relataram problemas. Ações que buscam levar algum conforto para a população dependente química são associadas à criminalidade. “Tentam nos associar ao tráfico, mas não sou do crime nem da polícia, eu estou lá para ajudar, seja quem for”, disse o pastor Rica, em entrevista à Folha de S.Paulo, em setembro de 2021. Rica é fundador da Associação da Pedra para a Rocha e, na ocasião, reclamou da pressão para encerrar as atividades.

Mas talvez a figura que mais sofra com as perseguições seja o padre Julio Lancelotti. O religioso, que é responsável pela Pastoral do Povo de Rua, é vítima frequente de ataques de políticos. Recentemente virou alvo da ira de vereadores conservadores, que tentam emplacar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo. Mesmo sem receber dinheiro público, ele é acusado de usar verbas para manter obras sociais nos territórios de uso e assim ser um facilitador do tráfico.

Há décadas, Padre Julio é referência na ajuda e proteção das pessoas em situação de rua. Mas diante de problemas tão abrangentes e superlativos que lida na Pastoral, quase nunca é visto na cracolândia. Mas, isso é irrelevante para os detratores. O importante é contabilizar visualizações nas redes sociais afirmando que a distribuição de comida incentiva a criminalidade. Coerência nas palavras ou nas ações é algo que não se vê nos discursos dos políticos.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.