Qualquer que seja o resultado da eleição, as ações da prefeitura de São Paulo continuarão guiadas por uma linha religiosa e conservadora

Qualquer que seja o resultado da eleição, as ações da prefeitura de São Paulo continuarão guiadas por uma linha religiosa e conservadora

Logo saberemos o nome do prefeito eleito em São Paulo. Mas, pelas propostas apresentadas ou discutidas – quando foi possível, sem cadeiradas ou socos – principalmente no que diz respeito aos direitos das mulheres, a política paulistana será cada vez mais guiada por noções religiosas e conservadoras. Por isso, peço desculpas a quem me lê pela minha falta de esperança em relação ao tema. 

Já sabemos qual é a posição do ainda prefeito Ricardo Nunes (MDB) em relação ao aborto: além de ter suspendido sem explicações convincentes o atendimento legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, Nunes apresentou a campanha “com Ricardo, aborto não” nas redes sociais. “Eu sou pró-vida. E a minha vida inteira, até como cristão, eu defendi essa questão”, afirmou. Para provar, emendou a fala com um vídeo de agosto de 2018 (quando ainda era vereador) contra a discussão da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal em que pedia orações para que Deus intercedesse “pela vida”. “Nós somos pela vida. Ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém”. A ADPF 442 foi impetrada pelo PSOL e pede a descriminalização do aborto. 

Ah, mas com Guilherme Boulos (PSOL), a prefeitura será pela vida das mulheres e meninas violentadas e terão o direito ao aborto legal. Será? Num passado não muito distante, Boulos, que é deputado federal, se declarava a favor do direito das mulheres a decidirem sobre o aborto. Agora dá respostas evasivas e repete que defende o aborto legal (nunca é demais relembrar que o aborto é previsto em lei em casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mãe ou feto anencéfalo). Mas o tema mal apareceu na campanha do candidato.

No debate que aconteceu na TV Record em setembro, Boulos chegou a ser questionado pela candidata Tabata Amaral (PSB). "Você, nesta eleição, abriu mão de posicionamentos históricos que você e seu partido defenderam veementemente". A candidata se referia não apenas à legalização do aborto, mas também sobre a descriminalização das drogas e o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela. Boulos fez cara de surpresa, disse que Tabata estava errada, mas não respondeu à candidata. 

Nunes optou por não comparecer a três dos debates marcados para o segundo turno. Em dois deles, Boulos falou sozinho, sabatinado pelos jornalistas. Diante da desistência do prefeito, o debate que aconteceria no SBT foi cancelado. Outros dois debates estavam previstos: um, organizado pela TV Record e o jornal O Estado de S. Paulo e outro, pela TV Globo. Mas até o término deste texto não houve confirmação sobre a participação de Nunes. 

No debate promovido por RedeTV/UOL/Folha de S.Paulo estavam previstas perguntas sobre o fechamento do hospital Vila Nova Cachoeirinha. Mas, o jornal Folha de S. Paulo publicou depois que as perguntas seriam dirigidas ao atual prefeito. Boulos não foi questionado sobre o tema, nem sobre propostas nessa direção. As perguntas focaram na ausência de Nunes, o novo flagelo paulistano dos apagões e as pesquisas de intenção de voto.

Ao olharmos para o programa de governo dos dois candidatos no que se refere à saúde como um todo, as propostas são vagas e superficiais. Quando o assunto se afunila para a saúde da mulher, a situação piora. A especialista em saúde pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lígia Bahia, a pedido do jornal Folha de S.Paulo, avaliou os planos dos dois candidatos. 

Reproduzo aqui a avaliação da especialista no quesito saúde da mulher: “o atual prefeitorestringe (grifo dela) a cobertura de saúde da mulher a ampliação de serviços de prevenção, tratamento e planejamento familiar, além de campanhas educativas sobre direitos reprodutivos". Lígia também comenta sobre o fechamento do hospital Vila Nova Cachoeirinha. Sobre o programa de Boulos: “o deputado federal, no entanto, não menciona(grifo dela) a cobertura de saúde da mulher no seu plano de governo”.

Olhando para o legislativo paulistano eleito em 6 de outubro, a impressão que fica é que temas como o aborto legal não receberão muito apoio. De fato, houve aumento na participação de vereadores pretos e pardos e o número de mulheres cresceu de 13 para 20 vereadoras, entre elas a vereadora trans Amanda Paschoal (PSOL). Mas, as notícias boas param por aqui. Das 20 eleitas, apenas sete são de partidos de esquerda. 

E o vereador mais votado, Lucas Pavanato (PL) já anunciou que seu trabalho se baseará nas pautas antiaborto e pró-vida. Deve receber muito apoio da colega de partido, a evangélicaSonaira Fernandes. Ela volta à Câmara Municipal depois de deixar o cargo de secretária estadual da Mulher quando gastou boa parte do orçamento da pasta na organização ou participação de eventos com temas religiosos e pró-vida. 

Eleito com votação recorde, Pavanato contou com o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro e do deputado federal Nikolas Ferreira, ambos do PL. Mesmo muito jovem, com 26 anos, o vereador aposta em bandeiras bastante conservadoras para agradar o eleitorado, principalmente o evangélico. Entre elas está o fim das cirurgias de mudança de sexo e a proibição o aborto, inclusive o legal. 

Nas muitas entrevistas que deu após a eleição, o jovem vereador disse que o único tipo de aborto que aceita é se a gravidez traz risco de morte para a gestante. Na escolha de uma vida, ele escolhe a da mãe, declarou. No mais, promete fomentar grupos pró-vida para acolher as mulheres que se “veem obrigadas pela esquerda a abortar”. Pavanato também quer proibir mulheres trans de usarem banheiros femininos, algo que já foi derrubado pela justiça paulista. Boa sorte, Amanda Paschoal! Com um vizinho de gabinete assim você vai precisar.

  *Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.