O lugar do pentecostalismo na reforma protestante

O lugar do pentecostalismo na reforma protestante

A Reforma Protestante foi um evento homogêneo e único?
Não.

Então o correto é pronunciar no plural e falar de “Reformas”?
Sim.

O Pentecostalismo é reformado?
Sim e não.

Por quê?
Com as divisões entre os diversos reformadores, surgiram “alas” da Reforma, por isso, estritamente “reformados” são os calvinistas; os demais são protestantes ou evangélicos.

Mas de qual das “alas” das Reformas o pentecostalismo é herdeiro?
Confira a resposta no texto.

Há mais de 25 anos, o teólogo pentecostal peruano, Bernardo Campos, em sua obra Da Reforma à pentecostalidade da Igreja, publicada no Brasil em 2002 (Sinodal), tratou do assunto e mostrou que somos herdeiros da ala radical da Reforma. Com acerto, ele diz que “Embora as Reformas luterana (1517), calvinista (1534) e anglicana (1555) nos atinjam de alguma forma e nos concedam identidade de “não-católicos”, elas não representam a totalidade de nossa tradição pentecostal, porque, à exceção da Reforma radical, a Reforma oficial não foi pentecostal, senão até mesmo antipentecostal” (p.14).

Em sua Teologia dos Reformadores (Vida Nova), o historiador Timothy George, diz com justiça, que a “Reforma Radical foi um tremendo movimento de renovação espiritual e eclesiástica que ficou à margem das importantes igrejas territoriais, a católica e a protestante, durante a grande convulsão do século 16”, contudo, “esse movimento não foi nem marginal nem periférico em suas motivações básicas e vitalidades espirituais”, acrescentando ainda que somente “nos últimos anos, os reformadores radicais começaram a emergir da sombra do opróbio lançada sobre eles por seus oponentes” (p.297).
Timothy George cita George H. Williams dizendo que este “propôs ‘a Reforma Radical’ como um termo coletivo para todos aqueles grupos inovadores religiosos que não permaneciam nem nas igrejas católicas romanas, nem nas protestantes históricas” (p.298).

Assim, a “Reforma Radical”, diz Timothy George, “não foi meramente uma ‘ala’, um efeito colateral que revelou apenas uma forma mais extrema da Reforma; antes, foi um movimento que gerou nova forma de fé e vida cristãs”, isto é, “uma ‘reforma da Reforma’, ou uma ‘correção da correção do catolicismo’” e tal aconteceu pelo “fato de que a maior parte dos radicais se viu forçada a desenvolver seu modelo de vida cristã fora dos confins das igrejas oficiais” e foi justamente isso “que deu à espiritualidade e à vida eclesiástica desse grupo uma identidade distinta”, isto é, fez com que os “reformadores radicais” vivessem “fora da ordem estabelecida” (p.299).

Os mais proeminentes líderes reformistas, representantes da ala radical da Reforma, foram Andreas Karlstadt — antigo colega de faculdade e posterior antagonista de Lutero que, diferente do ex-monge agostiniano, negava a “presença real de Cristo na ceia”, denominada União Sacramental, defendendo uma posição “espiritualista”, que hoje praticamos e chamamos de simbólica, ou representativa, além de defender a regeneração que se segue ao ato da justificação defendido por Lutero — e Thomas Müntzer.

Em linhas gerais, os adeptos da Reforma radical defendiam um encontro imediato com Deus, sem mediações sacerdotais, isto é, sem sacramentos, considerando antibíblico o batismo infantil e defendendo que a ceia do Senhor não conta com a “presença real” de Cristo (rejeitando a transubstanciação católica e a União Sacramental luterana), sendo ambos ordenanças e símbolos, destinados a pessoas adultas que fizeram não uma profissão mecânica de fé, mas que tiveram uma experiência com o Senhor Jesus Cristo, recuperando assim um importante aspecto da tradição mística medieval alemã, representada por Johannes Tauler.

Os textos de Karstadt, marcados por forte misticismo, foram responsáveis pela chamada teologia do novo nascimento e da santificação, sendo ele considerado uma espécie de precursor do pietismo, tendo o místico Valentim Weigel sido o responsável pela transmissão dos pensamentos karstadianos entre a Reforma e o pietismo. Müntzer, por sua vez, recebeu de Karstadt os ensinamentos da mística de Tauler, cuja ênfase recaía sobre a recepção do Espírito Santo no abismo da alma, os quais foram fundamentais para sua teologia. É digno de observação o que informa o historiador Carter Lindberg, em sua obra História da Reforma (Thomas Nelson Brasil), ao dizer que o estudo de Tauler por parte de Müntzer, “ocorreu com uma cozinheira da paróquia de Orlamünde, uma mulher simples e piedosa. Por mais que tivesse iniciado seu estudo de Tauler com Karstadt em Wittenberg, seu estudo em Orlamünde sugere, uma vez mais, orientação de Müntzer em direção à sabedoria de iletrados acima da de ‘escribas’” (p.179).

Essas características marcaram a fundação do Pietismo, nos séculos XVII e XVIII. Tal movimento defendia “um ‘Avivamento’, uma ‘regeneração’ e uma ‘santificação’ de cada alma, assim como uma transformação do mundo com vistas ao reino de Cristo (reino de paz que os pietistas acreditavam estar próximo)” e assim faziam, de acordo com Hans-Jürgen Schrader, no verbete Pietismo, da Enciclopédia do Protestantismo (Hagnos): “Para se contrapor às ortodoxias ancoradas no dogmatismo teológico da controvérsia e em um cristianismo rotineiro” (p.1367). Acrescentando ainda o mesmo autor que tal corrente da Reforma, ou seja, o “pietismo foi fundado com base nas tradições da mística, da ala radical da Reforma, dos espiritualistas e ascetas pansofistas — tais como Johannes Tauler (?1330-1361)” (p.1368).

Isael de Araujo, em seu Dicionário do Movimento Pentecostal (CPAD), informa que o “pentecostalismo nos Estados Unidos foi influenciado pelo pietismo surgido na Alemanha no século 17”, dizendo que os “pentecostais norte-americanos, no fundo, articularam o foco central do pensamento pietista” (p.586).

Portanto, se você é pentecostal, quando for celebrar mais uma aniversário da Reforma no próximo dia 31 de outubro, lembre-se de que você não é “protestante oficial”, ou “magisterial”, não é herdeiro do luteranismo e nem do calvinismo, mas da corrente reformista radical, mística, pietista e carismática. Corrente legítima das Reformas do século 16, mas que é apagada e detratada por muita gente que não a considera legítima e nem reformada, mas isso nada mais é que desconhecimento em sua maior parte e preconceito em muitas outras, sendo o mais importante o fato de que conhecer nossas raizes nos dá segurança para preservar nossa identidade.

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