Parlamentares cristãos tentam ressuscitar o Estatuto do Nascituro
Não satisfeitos com a proibição do casamento homoafetivo, integrantes da bancada conservadora agora querem ressuscitar o Projeto de Lei 478, de 2007, conhecido como Estatuto do Nascituro. A iniciativa é da deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ), líder da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida. Jovem advogada de 32 anos, Tonietto se apresenta como “católica, esposa e mãe”, é hoje a voz mais retumbante do Congresso nas chamadas pautas pró-vida e tem grande capacidade de arregimentar outros parlamentares em torno das causas que defende. Tanto que conseguiu protocolar um requerimento de urgência urgentíssima para apreciação do PL 478/2007 com a assinatura eletrônica de 305 deputados. Para entrar na pauta, o requerimento precisa de, no mínimo, 257 assinaturas.
A esmagadora maioria de deputados e deputadas que assinaram o requerimento são de partidos da direita conservadora e cristã. Mas três deputados do PSB também registraram seus nomes: Heitor Schuch (PSB/RS), Guilherme Uchoa (PSB/PE) e Jonas Donizette (PSB/SP). Os partidos de esquerda se arrepiam quando ouvem falar do Estatuto do Nascituro. O tema foi totalmente apropriado pela direita, mas, lamento informar aos desavisados que o PL 478/2007 é do ex-deputado federal petista Luiz Bassuma, da Bahia. Ele divide a autoria do projeto com Miguel Martini (PHS-BH), morto em 2013.
Tonietto aproveitou o que está sendo encarado como recuo do ministro Luiz Carlos Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em relação à votação da descriminalização do aborto até os três primeiros meses de gravidez. Após o voto favorável da ex-presidenta Rosa Weber, Barroso retirou o tema da pauta. Alegando que o assunto “talvez ainda não esteja maduro para o debate”, jogou a bola para o Parlamento: “acho perfeitamente plausível que uma questão importante como essa seja debatida no Congresso também”. Tonietto matou no peito. Se o requerimento da deputada fluminense for aprovado, o texto poderá ser analisado diretamente pelo plenário, sem precisar passar pelas diversas comissões da Câmara.
Em parceria com o colega mineiro de partido Nikolas Ferreira, Tonietto também reuniu religiosos, representantes dos movimentos pró-vida e crianças em uma sessão solene na Câmara em homenagem ao dia do nascituro. Na fala dos presentes, a interrupção da gravidez era relacionada a “crime hediondo”, “cultura de morte”, “genocídio silencioso”, sempre com a intenção de criminalizar mesmo aquelas situações que são previstas por lei: gestação resultante de estupro, anencefalia do feto e risco de morte para a mãe. Também nada foi falado sobre as violências sofridas pelas mulheres e sobre o tanto de homens que abandonam suas companheiras quando elas engravidam. A defesa da vida dessas mulheres, que muitas vezes são apenas meninas, parece não ser foco da atenção do grupo.
A visão conservadora do Congresso sobre o direito já adquirido de interrupção da gestação tem provocado situações curiosas. No último dia 25 de outubro, o Senado não aceitou a indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o comando da Defensoria Pública da União. Igor Roque teve seu nome rejeitado por 38 votos contrários e 35 favoráveis. O motivo: o indicado de Lula foi relacionado a um seminário sobre aborto legal que havia sido anunciado pela Defensoria em agosto.
Em julho, Roque foi sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado que aprovou a indicação. Mas com o anúncio do seminário, parlamentares conservadores ligaram seu nome à organização do evento. O senador Eduardo Girão (Novo-CE), o mesmo que tentou entregar uma réplica de plástico de um feto de 12 semanas ao ministro dos Direitos Humanos Silvio de Almeida, usou a tribuna para dizer que a Defensoria fazia “apologia ao crime de aborto”. Em nota, a Defensoria informou que o seminário estava sendo organizado desde abril, antes mesmo da sabatina de Roque na CCJ. Diante do ruído gerado, o seminário foi cancelado, mas o estrago já estava feito.
E como o tema ressurreição é caro aos cristãos, os parlamentares querem reviver outro projeto que já havia sido dado como morto: a famigerada “cura gay”. O presidente da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, Fernando Lucena (PL-PE) quer colocar em votação até o final do ano o projeto de autoria do ex-deputado e pastor evangélico Ezequiel Teixeira (RJ), de 2016.
A Comissão é a mesma que aprovou a proibição do casamento entre pessoas LGBTQIA+. O projeto prevê uma série de terapias que fariam a pessoa deixar de ser homossexual para se tornar heterossexual. E ainda tenta proteger de punições os profissionais que aplicarem a técnica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) refuta “cura” para algo que não é considerado doença. O deputado Pastor Eurico (PL-PE), o mesmo que escreveu o parecer cheio de citações bíblicas favorável à proibição do casamento homoafetivo, já se habilitou para ser o relator do projeto. Oremos!
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Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.