O ponto em comum na organização social das igrejas e do crime
Para além da questão da conversão religiosa de traficantes e ex-traficantes, existe um ponto em comum na organização social das igrejas e do crime. Em geral, elas se dão pela iniciativa de grupos que compartilham os mesmos sofrimentos daqueles que formam seu público alvo.
O tema da violência ligada ao crime desde cedo me instigou. Ao fazer trabalhos etnográficos a respeito dessa cena, realizando para isso entrevistas com traficantes e criminosos em geral, um recorte, muito difícil de abordar, por sinal, despertou meu interesse. Falo das pessoas que, vindas do crime, passaram por um processo de conversão religiosa.
Ao estudar o processo de metanoia, termo que originalmente significa uma mudança de consciência ou de caráter e que no contexto teológico define as conversões espirituais, fui encontrando histórias muito impressionantes, curiosas e, ao mesmo tempo profundas. A imagem da mudança de um software na cabeça do sujeito, como se sua mente experimentasse um reboot para ressurgir reconfigurada numa outra forma sempre me interessou.
Investigando tais casos, passei a refletir sobre um paralelo: as transformações mentais que eu testemunhei ao longo de vinte anos na cena criminal de São Paulo. A organização do crime, de alguma forma, pareceu-me muito próxima, em diversos aspectos, da organização das igrejas evangélicas.
Apesar de serem mundos distintos, ambas dinâmicas criaram formas de controle e de construção de propósitos vindos de baixo, que mudam comportamentos e redirecionam as ações dos que passam a seguir suas ideias. A organização do crime e a organização das igrejas nas periferias, em geral, se dá pela iniciativa de grupos que compartilham os mesmos sofrimentos e as mesmas misérias daqueles que são o público alvos dessas organizações. Oferecem caminhos possíveis para vidas que estavam paralisadas.
Os integrantes do PCC, que compartilharam o drama dos assassinatos e da imprevisibilidade dos anos 80 e 90, redefiniram regras, objetivos e discursos de união no crime e de rebeldia contra o sistema, que deram novo rumo às carreiras criminais. Uma ideia forte, associada a normas funcionais, passaram a ser horizontalmente geridas nas prisões e nos bairros pobres. No caso das igrejas, ocorreu algo parecido. Líderes de pequenas igrejas, que compartilham com os fiéis uma vida de discriminações relacionadas à miséria, à raça, à cultura, ao local de origem, passaram a renascer a partir das novas crenças, que fortaleceram a autoestima, a disciplina e o propósito para lutar e se apoiar em rede na luta pela sobrevivência em cidades injustas e violentas.
Esse paralelo entre duas dinâmicas que ocorreram nos mesmos lugares, nas periferias, sempre me interessou muito. Tanto que eu decidi pesquisar, e escrever sobre o tema.
Embora não seja um fenômeno recente, até pouco tempo atrás ele permanecia invisível do debate público não acadêmico, como se fosse pouco importante. Com o governo Bolsonaro, no entanto, a coisa ficou tão escancarada que se tornou impossível não pensar a respeito. Porque integrantes de ambos os grupos passaram a fazer parte da elite e do poder.
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