O Policial e a Pastora: antifascismo e feminismo cristão no cinema brasileiro
O filme O Policial e a Pastora, da experiente diretora Alice Riff, foi selecionado para a Mostra Competitiva Brasileira do 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que aconteceu entre os dias 14 e 22 de junho. Foi interessante assistir à estreia na Mostra, no dia 19 de junho, ao lado da diretora e de Valéria Cristina Vilhena, a pastora do filme.
Belo e instigante extrato do cinema autoral contemporâneo, o filme carrega nuances de personagens reais. A primeira parte é dedicada ao policial antifascista e autodenominado macumbeiro freestyle, Alexandre Félix Campos. E na segunda, é a vez da ali chamada e reconhecida como pastora Valéria Cristina Vilhena, fundadora de Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, do qual também faço parte.
Com recorte bem definido, de exemplos e possibilidades de trajetórias de vida que são mostradas e se desenvolvem em performances politizadas em som, doçura, ira e lágrimas, o filme surpreende também ao englobar expressamente a subjetividade e a voz/corpo/presença da própria diretora, sendo ela mesma pautada e conduzida na construção audiovisual pelas mesmas pessoas que dirige e a partir de suas histórias e sentimentos. São apresentadas reflexões que interagem e instigam Alice Riff, quase em uma espécie de “conversão” aos novos sentidos de existência que ali se desenrolam na cadência e ocupação de espaços até então desconhecidos ou desprovidos de significados para a diretora.
A passagem de tempo mostrada resvala e registra a trágica incidência da pandemia de covid19 e do período concomitante e sufocante da extrema-direita à espreita no Brasil. Contudo, se por um lado há morte pela existência de não espaços, as agruras e sofrimentos no ângulo mostrado pelo policial, na perspectiva da pastora e das Evangélicas pela Igualdade de Gênero, brota a vida. Ruah, termo hebraico que é sopro de vida, vento, força vital surge como condicionante de espiritualidades diversas, igualitárias, inclusivas, antirracistas, antiLGBTQIAPN+fobia que brotam do chão da vida, se mostrando também como componente da vida cotidiana teimosa que brota mesmo entre as pedras e como se erva daninha fosse. Ruah aparece como o sopro da vida em abundância para todas, todes e todos, como contraponto à morte existencial/filosófica plantada aos pés do túmulo/cenário da morte.
Ao fim e ao cabo, é possível afirmar que Alice Riff e toda a sua equipe entregaram um filme comovente e sensível. E nesse processo, pode se dizer, que ela própria ao produzir um filme, também produziu reflexão teológica. Suas palavras finais, percorrendo os significados dados previamente sobre a Ruah de Deus, alinhavam a morte no túmulo/cenário com a teimosia da vida e da manutenção da coletividade expressa nas Evangélicas Pela Igualdade de Gênero.
E é assim que as Mulheres EIG primam pela responsabilidade de carregar a denominação e o significado de evangélicas em seu nome. E não somente isso, para além do “caldo evangélico”, contando com a parceria de mulheres espíritas, católicas, ateias, “desigrejadas” e de dupla ou tripla pertença religiosa, elas evidenciam o desenvolvimento e a oferta de novas narrativas e novos espaços de espiritualidade inclusiva e comunitária para quem delas se aproximam. Interligadas também por afeto e cuidado, Mulheres EIG caminham embasadas no exercício do diálogo interfé, de relações horizontais, de amizades inspiradoras e sem, por óbvio, a famigerada hierarquia e sacralização egolátrica que vemos, tão costumeiramente por aí, entre as comunidades religiosas e em nossa sociedade adoecida.
Participei desse momento em Curitiba, indo à primeira exibição do filme (houve outra no dia 20 de junho) na companhia de Sueli Galhardi (coordenadora de Evangélicas pela Igualdade de Gênero Paraná e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Londrina). Presenciei também o debate após o lançamento. E posso deixar como registro o que me veio à mente naqueles instantes mistos de ansiedade e euforia pós-filme. Naquela boa e grata sensação que tive e diante da participação desse ajuntamento de mulheres diversas e pela diversidade, me lembro bem que o que ficou registrado me direcionou à bela canção de Maria Bethânia que assim sempre cantarolo em trechos: “não mexe comigo, que eu não ando só. Eu não ando só. Eu não ando só”.
O filme O Policial e a Pastora ainda não tem previsão de estreia no circuito nacional de cinema. Mas Alice Riff promete a sua exibição em outras mostras e festivais de cinema pelo Brasil afora. Agora, é aguardar um pouco mais para assistir e prestigiar o cinema brasileiro.
Sinopse (Olhar de Cinema): Em um contexto contemporâneo marcado pelo signo da polarização, Alice Riff investe no desafio do “entre”. Seu interesse se volta para pessoas que lutam contra os pensamentos hegemônicos em instituições historicamente conservadoras: Valéria, fundadora do grupo de Evangélicas pela Igualdade de Gênero, e Alexandre, policial crítico à organização. Ao materializar alguns dos dilemas do Brasil de hoje, o documentário assume os riscos do colocar-se em relação e da negociação entre diferentes perspectivas de mundo e desejos de filme, entre quem propõe o projeto e quem se dispõe a estar nele.
* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Lauana A. Flor é Mulher EIG São Paulo e mestra e doutora em Ciências da Religião pela UMESP.