O poder dos líderes e o silenciamento das bases
É relativamente fácil reconhecer que dentre os indivíduos que hoje identificam-se com a religiosidade evangélica existe um grupo minoritário que costuma estar em evidência no debate público. Isso se deve, obviamente, pela disposição que esse grupo têm de canais e meios de comunicação que permitem a veiculação de suas pautas, projetos e ideias. Por isso podemos afirmar que eles fazem mais barulho que a maioria dos evangélicos.
Numa posição oposta a desses líderes, as bases evangélicas, isto é, a imensa maioria dos fiéis, vivencia uma experiência de silenciamento. A compreensão desse silenciamento não passa apenas pelo motivo mais concreto de que os canais de comunicação pertencem aos líderes e não ao conjunto dos fiéis. O silêncio que predomina entre os sujeitos que frequentam as igrejas evangélicas parece derivar do próprio modo como os espaços de culto são administrados, segundo uma organização interna na qual predomina a prática de culto da figura do líder religioso.
Na dinâmica de funcionamento das igrejas evangélicas é comum ocorrer uma espécie de verticalização do poder em torno da figura do líder ou do pastor, de quem geralmente se espera o exercício do poder e da repressão. Esse formato vertical de administração do espaço dos cultos sublinha, além disso, uma metáfora de ascensão. A imagem é expressiva: ao religioso que almeja no futuro alcançar a posição do seu líder, resta escalar, para então ascender ao topo do poder, de onde poderá falar alto, conforme demanda o bom funcionamento desse sistema babilônico.
Esse modelo de admnistração das igrejas evangélicas não pressupõe apenas os usos do poder, mas depende também da identificação da maioria dos religiosos que frequentam os cultos com o líder. Como pano de fundo desse processo, identificamos o que parece ser a valorização da autoridade. Valoriza-se o líder religioso por sua eloquência, por sua capacidade de convencimento, mas sobretudo porque a autoridade projetada nesse líder é concebida como tendo sido instituída por Deus. Isso porque, conforme a crença cristã, o líder, por meio de sua impressionante oratória, estaria expressando na verdade a voz do próprio Deus. Uma das consequências desse modelo de liderança presente na estrutura das igrejas evangélicas é a inclinação dos fiéis pela adesão à mensagem trazida pelo líder. O fiel, situado no interior desse modelo babilônico, tende a escutar e a absorver a mensagem do líder religioso.
O que é interessante demarcar em torno desse problema é o contraste que pode ser estabelecido entre esse modelo de poder e a mensagem de Cristo referente ao que sucederá quando seu reino for instaurado. Durante a sua vida, Jesus Cristo percebeu que aqueles que ocupavam os postos de poder se valiam da violência para intimidar os menores, os que se encontravam nas bases da sociedade. O advento do reino cristão subverteria essa ordem hierárquica ao trazer a promessa de que aqueles que se encontravam no topo, passariam a servir àqueles que antes encontravam-se nas bases.
Evidentemente que o reconhecimento das dinâmicas de poder que vigoram nas igrejas evangélicas não deve nos impedir de considerar os exemplos de religiosos que atuam no sentido contrário, de questionamento crítico da idolatria política ou religiosa. Uma comparação entre os evangélicos Silas Malafaia e Marina Silva, por exemplo, põe em cena dois perfis contrastantes. Marina Silva é uma evangélica que não se situa no campo do fundamentalismo religioso e que tem uma base moral admirável. A postura dessa personalidade destoa significativamente da conduta de pastores midiáticos como Silas Malafaia, para quem é indispensável a manutenção do sistema de poder que vigora nas igrejas evangélicas.
Afirmamos acima que uma consequência desse sistema de poder está no silenciamento das bases evangélicas. Cabe dizer ainda que tal silenciamento deve ser pensado também como uma imposição dirigida àqueles que se opõem aos líderes religiosos. As contestações à figura do líder e ao modo como ele exerce o poder culminam não poucas vezes em perseguições e mesmo em expulsões. Nesse sentido, o que essas igrejas promovem não é uma cultura do diálogo, mas antes uma espécie de totalitarismo religioso o qual, infelizmente, está amplamente difundido nas igrejas evangélicas como um todo e de modo mais agudo nas igrejas neopentecostais.
Retornando ao exemplo do Cristo, podemos então imaginar que a capacidade de convencimento, que esperamos da figura de um líder que se propôs a atrair as multidões para o seu reino, poderia situar Jesus naquele lugar de quem detém o poder de silenciar o outro. Entretanto, o desfecho da vida do Cristo revela que ele se entregou como um cordeiro mudo em direção ao matadouro, de modo que no momento de sua morte a voz dos opressores havia predominado. Claro que, no fim, a morte do Cristo simboliza a sua vitória, a vitória do profeta que venceu a morte. Se Jesus não tivesse vencido a morte, ele teria sido vencido pela força daqueles que lograram impor suas vozes.
Ainda a respeito do silêncio, já no século XX, Martin Luther King, em determinado momento de sua luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, percebeu que a Igreja havia se calado diante daquela questão. O silêncio da igreja levou Martin Luther King a experenciar um estado de profunda solidão. Naquele contexto, o ativista afirmou que seu problema não residia no grito dos maus, mas sim no silêncio dos bons.
Acredito que o silenciamento das bases evangélicas é uma questão que precisa ser urgentemente discutida. Ao contrário do que posso ter dado a entender, existe, é verdade, uma movimentação positiva, de combate e esse tipo de silenciamento, protagonizada por muitos pastores que atuam por todo o Brasil. É lógico que quando consideramos a dimensão do problema aqui tratado, essas vozes são ainda poucas, no entanto, ainda assim, elas estão emergindo.