O papel do "Protestantismo Tipográfico" na formação dos evangélicos no Brasil

O papel do "Protestantismo Tipográfico" na formação dos evangélicos no Brasil

Benedict R. Anderson em sua obra Comunidades Imaginadas oferece uma sugestiva explicação para a consolidação dos sentimentos nacionalistas que contribuíram para a formação dos chamados Estados Nacionais, no período de transição entre o medievo e a modernidade. Sem desconsiderar outros fatores como o surgimento de uma burguesia; o enfraquecimento da Igreja Católica Apostólica Romana em virtude de seu desgaste interno e do consequente surgimento da Reforma Protestante; a mudança de paradigma que impulsiona a transição entre diferentes períodos da História;a passagem do sistema feudal para o capitalista, como sugeriu Leo Huberman; Benedict Anderson reconhece a relevância da leitura e das obras em circulação para o fomento de uma imaginação que permitiu a consolidação dos Estados Nacionais, especialmente sob a Teoria do Contrato Social de Jean Jacques Rousseau. A submissão coletiva a algo que, a rigor, não existe, a não ser como holograma produzido pela imaginação, só teria sido possível, segundo Anderson, pelo capitalismo tipográfico, pela circulação de novas ideias em formato de textos e que viabilizaram a coletiva imaginação de um Estado que em muito suplantaria os feudos.

Tomo, pois, essa ideia de Anderson para propor o que passo a chamar de Protestantismo Tipográfico. A Reforma Protestante gerou grande impacto na educação, seja na produção de literatura, seja na tradução e popularização da Bíblia, ou ainda na alfabetização das pessoas, contribuindo para a formação de um mercado leitor, ávido por conhecimento. Muito da expansão e consolidação da Reforma ocorreu devido a estacaracterística de promoção de literatura específica para as comunidades de fé.

Este importante aspecto foi levado para o "Novo Mundo", bem como esteve presente na expansão do chamado Protestantismo de Missão, por ocasião do envio demissionários ao Sul Global, incluindo o Brasil, em meados do século XIX. Ao se instalar aqui, uma das formas adotadas para o evangelismo residia na produção de folhetos evangelísticos, hebdomadários denominacionais, literatura para estudo nas escolas dominicais, assim como a impressão de bíblias para distribuição entre o povo. Lyndon Santos ao analisar a incursão protestante no Maranhão destacou a importância do uso da literatura evangélica tanto para a consolidação dos crentes, como também para aquilo que seria uma semeadura da mensagem do evangelho trazida por missionários, pelos "colportores" da fé.

Por que isto nos interessa neste momento da História do Brasil? O protestantismo tipográfico foi o principal modo de sedimentação dos chamados evangélicos no país, decorrendo desta tese, entre outros:

a) que uma vez que a literatura foi sendo desenvolvida ao longo do tempo, por diferentes escritores pertencentes a diferentes denominações, e com teologias diversas (tanto dos escritores, quanto das denominações), o movimento evangélico no Brasil aprendeu a lidar com diferentes vozes no seu período formativo. A plurivocidade sempre foi a tônica no movimento evangélico, e não a univocidade, mesmo considerando as denominações episcopais. Este é um dos principais motivos pelos quais os evangélicos não possuem um porta-voz que os represente, ainda que alguns pleiteiem este lugar de fala. Desde cedo os evangélicos diferenciam a voz que cabe somente a Deus, das diferentes vozes, melhor visualizada na sua liderança;

b) que paralelamente a atual configuração digital com seus influencers, os evangélicos do Brasil têm pastores autores de lições para a escola dominical em alta deferência. São nomes endogenamente conhecidos, influenciadores orgânicos. Estes produziram e produzem textos lidos por centenas de milhares de pessoas todo o trimestre e por anos a fio. Vozes que se alternam para o bem (e também para o mal, é verdade) através da literatura evangélica consumida pelas igrejas e pelos crentes;

c) que o pensamento evangélico no Brasil foi sendo moldado ao longo desses quase duzentos anos, criando uma espécie de protótipo mental do que é aceito como evangélico. O tipo aqui é mais forte, tem proeminência sobre os que se arvoram como representantes dos evangélicos. Se o tipo desdiz o molde, se ele é uma desfiguração do evangélico médio imaginado, ele é descartado. Eis o risco para figuras histriônicas como Silas Malafaia.

d) a produção de literatura continua sendo um importante elemento de coesão, de fornecimento de estrutura, da coluna vertebral para as igrejas evangélicas. Dificilmente será encontrado um estudante da escola bíblica dominical em delírios e surtos coletivos como o "culto ao pneu", ou a transmissão de mensagem em código Morse para os alienígenas, usando aparelhos celulares... Como se o código Morse fosse uma linguagem universal...

e) que esta expansão vertiginosa dos evangélicos nos últimos anos se deve a alguns fatores como o casamento da teologia da prosperidade com o projeto neoliberal de empreendedorismo; o uso massivo das chamadas "células" que nada mais são que a adaptação eclesiástica das redes de marketing multinível popularizadas, por exemplo, em produtos das marcas Hinode, Herbalife entre outras; a perda da ênfase ética na pregação do evangelho em troca da adesão às grifes da fé, consequência do desenvolvimento de brandings de caráter religioso, como o caso da Igreja da Lagoinha; e principalmente a um substrato cultural-literário resultado de décadas de produção e distribuição das mais variadas formas de literatura entre os evangélicos;

f) por fim, o reconhecimento de que os limites do que se imagina ser o evangélico no país, com toda diversidade que pode ser encontrada neste segmento sociorreligioso, foram construídos a partir da imaginação fomentada pelo que chamei aqui de "Protestantismo Tipográfico". 

Finalizo ressaltando que uma é a imaginação produzida entre os evangélicos; outra, que pode ser bem diferente é aquela projetada, esperada por Jesus; uma resulta no movimento evangélico, na formação das mais variadas comunidades da fé ditasevangélicas, outra é a comunidade do Evangelho de Jesus que, ao longo da História, não tem o costume de impressionar os recenseadores, nem tampouco fazer grandes marolas nas estatísticas oficiais, conquanto invariavelmente tenham o poder de transtornar o mundo (Atos 17.6), de serem vistos e notados como discípulos de Jesus, primeiramente chamado de Nazareno, mas reconhecido como o Cristo.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.