O mapa da influência evangélica nas redes sociais: comentários sobre a pesquisa Radar Evangélico

O mapa da influência evangélica nas redes sociais: comentários sobre a pesquisa Radar Evangélico

Cantores, pastores, políticos, youtubers, humoristas, coaches: é vasto o rol de atividades desenvolvidas pelos maiores influenciadores evangélicos brasileiros nas redes sociais, de acordo com a pesquisa Radar Evangélico, recentemente concluída pela Consultoria Nosotros[1]. A pesquisa, que realizou um mapeamento da influência evangélica considerando interconexões geradas a partir da rede social Instagram, contou com a coordenação do antropólogo Juliano Spyer e foi objeto de matéria publicada em 13 de setembro de 2023 pelo site da BBC News Brasil, sob o título “Jesus motivacional: quem são os ‘coaches evangélicos’”[2]. O levantamento da Nosotros destaca uma lista de 44 influenciadores evangélicos com ao menos 2 milhões de seguidores no Instagram, bem como as principais características e potencialidades das interações de seus perfis na rede. A metodologia empregada pelo estudo é inovadora e serve de inspiração para novos trabalhos de consultorias, institutos de pesquisa e acadêmicos ligados ao tema. Os resultados obtidos são instigantes. Gostaria de comentá-los brevemente neste espaço.
A pesquisa contempla uma listagem dos influenciadores que dialogam em massa com evangélicos nas redes, agregando milhões de seguidores e gerando milhões de visualizações, likes e compartilhamentos diários. Ela nos oferece ainda: 1) uma análise qualitativa dos tipos de conexão que os perfis estabelecem entre si, observando padrões como “quem segue quem” e “quem ignora quem”; e 2) uma sistematização dos temas e conteúdos que os perfis dos influenciadores comumente promovem em sua ação virtual, pautando o debate evangélico nas redes sociais. Com base nesses procedimentos, sociologicamente orientados, o estudo Radar Evangélico identificou quatro categorias de influenciadores, cada qual com potenciais de alcance de públicos específicos: a) os “mega influenciadores”; b) os “mega isolados”; c) os “fura bolha”; e d) os “líderes da turma”. Três grupos de temas enfatizados nas postagens dos influenciadores também foram destacados: tratam-se das “panelinhas” voltadas a assuntos devocionais (45% do total da amostra de perfis), motivacionais (30%) e políticos (25%).
Na categoria dos “mega influenciadores”, destacam-se os perfis que possuem maior quantidade de conexões diretas na rede, ou seja, os que mantêm posição de vinculação (seguem e são seguidos) e têm maior trânsito junto aos perfis de outros influenciadores. O “top 10” de perfis que fazem parte desse primeiro grupo conta com uma maioria formada por mulheres e, especialmente, cantoras de música gospel – é o caso de Eyshila, a líder do ranking, que soma um total de 66 conexões diretas. A força da influência das mulheres é visível não somente no interior do grupo dos “mega influenciadores”, mas também na maioria feminina presente entre os dez principais perfis “fura bolha” e “líderes da turma”. O estudo aponta para um fato relevante em suas conclusões: embora Eyshila e outras mulheres estejam melhor posicionadas em sua influência nas redes, elas em geral são menos conhecidas fora do campo evangélico do que homens evangélicos que, paradoxalmente, compõem a categoria dos “mega isolados”. Como entender essa disparidade? Embora os dados da pesquisa sejam extraídos unicamente do universo das conexões virtuais, alguns questionamentos provocados por eles são inevitáveis. Estaria a influência das mulheres evangélicas sendo pouco aproveitada? A voz feminina nas redes seria limitada por algum fator exógeno? Ou seria a nossa percepção sobre a representação evangélica excessivamente centrada nos homens, quando isso não corresponderia à realidade?
O grupo dos “mega isolados”, com predominância masculina, é formado por aqueles perfis que, inversamente aos “mega influenciadores”, têm menos conexões diretas com outros perfis influentes. Sete dos dez principais “mega isolados” são homens, a exemplo do cantor Fernandinho e do pastor e deputado federal Marco Feliciano (PL-SP), ambos com histórias de longa data no mundo evangélico. Quem está no topo da lista desse grupo é a cantora Priscilla Alcantara, com apenas 6 conexões. É interessante notar que Priscilla Alcantara tem buscado se afastar de lideranças e personalidades evangélicas por conta de críticas à aproximação e ao apoio oferecido por parte destas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a seu projeto político[3]. Esse desejo de distância é uma explicação viável para que haja um número reduzido de conexões. Mas o mesmo raciocínio valerá para os demais perfis? Automaticamente, não. Seria preciso ampliar a lupa sobre cada um dos influenciadores “mega isolados” para conhecer como se processa sua articulação com outros perfis e públicos evangélicos. Uma das interpretações possíveis para o engajamento de um grande número de seguidores em torno de perfis com um pequeno número de conexões é a influência exercida no interior de um mesmo grupo denominacional ou de opiniões políticas, por exemplo, sem que se extrapole esses limites.
A capilaridade dos influenciadores no campo evangélico, portanto, é um dos aspectos mais importantes que a pesquisa evidencia. Esta é, a meu ver, a principal contribuição apresentada pelo levantamento. Duas outras categorias de perfis elencadas ajudam a compreender melhor essa dinâmica de capilaridade a partir das redes. Entre os “líderes da turma”, são analisadas as conexões fortes que ocorrem dentro de um mesmo grupo e a intensidade das ligações entre seus vizinhos, com o auxílio do “coeficiente de clusterização”. Essa métrica permite captar o nível de “fidelidade” que um perfil é capaz de estimular em seu público, ou o potencial de contato e compartilhamento com os conteúdos por ele veiculados. Quanto mais perto de 1 se encontrar o coeficiente, em uma escala de 0 a 1, maior será o nível de adensamento das relações de um grupo com um determinado perfil. Lidera o ranking dos “líderes da turma” o pastor presbiteriano Antônio Júnior, conhecido pelas mensagens devocionais e orações em vídeo diariamente produzidas e compartilhadas em massa em redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp e o Telegram. Há, no entanto, uma dificuldade de compreensão da aplicação dessa métrica na pesquisa, uma vez que os resultados do estudo não incluem um detalhamento de sua operação prática ao leitor. Outra medida utilizada é a “centralidade de intermediação”, que determina o potencial de que um perfil se constitua em um “fura bolha”, ou seja, que logre êxito em ultrapassar os limites de um grupo exclusivo e atuar como uma “ponte” que conecta grupos distintos. Reside nesta classe o maior grau de capilaridade. Encontram-se nela os perfis com maior capacidade de mobilizar não um público maior, como fazem os “mega influenciadores”, mas um público mais diverso, o que dá a este grupo, segundo o estudo, “posição fundamental na circulação de dados na rede”.
O influenciador mais bem posicionado na categoria dos “fura bolhas” é o pregador Deive Leonardo, cuja atuação como youtuber e promotor de grandes eventos de evangelização com teor motivacional lhe tem rendido, ainda que de forma um tanto equivocada, a fama de “pregador coach”. Em uma associação entre discurso motivacional e coaching, a matéria da BBC Brasil que comenta o estudo identifica Deive Leonardo, o pastor Tiago Brunet e a atriz Bruna Hamú, todos citados no levantamento da Nosotros, como “coaches evangélicos” que têm ganhado relevância no cenário evangélico brasileiro nos últimos anos, sem fazer distinção entre coaches e influenciadores. Ocorre, no entanto, que Deive Leonardo e Bruna Hamú, ao contrário de Tiago Brunet, não atuam como coaches e nem possuem formação em coaching. O coaching é um processo de desenvolvimento pessoal que não é sinônimo de pregações e mensagens motivacionais, embora com elas se relacione no contexto evangélico[4]. Considero este detalhe digno de nota, haja vista que mal-entendidos podem surgir de uma interpretação que justaponha esses elementos distintos, estigmatizando tanto a prática de coaching por evangélicos quanto evangélicos cujos ministérios e pregações estejam focados na questão motivacional. A pesquisa Radar Evangélico não faz menção específica à categoria dos coaches; antes, ela sistematiza um grupo de influenciadores que produzem e veiculam conteúdos majoritariamente motivacionais (cerca de 30% do universo pesquisado), o que inclui os coaches, mas não se reduz a eles.
Se os influenciadores que se dedicam à produção de conteúdo motivacional correspondem a aproximadamente um terço da amostra, quase metade deles se volta para aspectos devocionais, como louvores, orações, pregações e mensagens diárias. Apenas um quarto – o que não é cifra desprezível, mas muitas vezes é um contingente superdimensionado – dos influenciadores fazem parte da “panelinha” (como o estudo define cada um desses três grupos) dos influenciadores interessados em política. Entre eles se encontram o já mencionado Marco Feliciano, “mega isolado”, e o pastor Silas Malafaia, que sequer se encontra na lista de “top 10” de qualquer grupo. Chama a atenção também a ausência do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), na lista dos 44 influenciadores. O líder neopentecostal conta com apenas 1,4 milhões de seguidores no Instagram. Assim como Macedo, diversas outras personalidades evangélicas com grande apelo midiático não estão presentes na lista, ainda que sejam consideradas espécies de “porta-vozes” do meio evangélico. O questionamento em relação à pesquisa, a esse propósito, é relativo à amplitude da análise: qual será, absolutamente, a importância do Instagram para o público evangélico? E como considerar outras redes sociais e instrumentos tecnológicos em novos investimentos de pesquisa, dimensionando corretamente a sua importância? Com que profundidade essas redes e instrumentos fazem valer sua influência e contribuem para a formação de opiniões evangélicas sobre os mais variados temas? Estes são bons desafios que se projetam sobre pesquisas futuras.
Ainda uma outra questão diz respeito aos modos como essa influência é exercida de maneira global, forçando as fronteiras estabelecidas pela sistematização. Explico melhor este ponto: não obstante visibilizem linhas de ação claras dos influenciadores evangélicos nas redes, as “panelinhas” também podem estar interconectadas entre si. Não há tema que seja de propriedade exclusiva dos influenciadores de uma “panelinha”. A questão política, por exemplo, pode ser acionada e assumir tanta importância para influenciadores devocionais e motivacionais quanto para influenciadores políticos, sobretudo quando períodos eleitorais e temas de sensibilidade moral vêm à tona no debate social. Como, então, se medirá e se mapeará essa influência? Essa é uma tarefa da mais alta complexidade, mas que já começa a avançar com iniciativas como a da pesquisa Radar Evangélico. Parece-me que algumas pistas surgem a partir do estudo promovido pela Consultoria Nosotros: o protagonismo feminino evangélico nas redes, com sua visibilidade ainda pouco reconhecida; a consolidação de um ethos motivacional evangélico em meio a ministérios como o de Deive Leonardo e práticas como o coaching; o relativo isolamento de “figurões” evangélicos em sua atuação como influenciadores digitais; e a ascensão de novas figuras com forte capacidade de “furar bolhas” no ambiente virtual, como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), cuja participação na “panelinha” política tem atingido, a partir do Congresso Nacional, o ponto da fervura das viralizações online. Aquele que supor que a influência evangélica caminha nas mesmas velhas direções incorrerá em ledo engano. Há muito “vinho velho em odres novos”. Com o perdão do trocadilho evangélico.


NOTAS:

[1] Empresa de consultoria estratégica especializada em religião (sobretudo evangélica) e conservadorismo de costumes. Cf. seu site. Disponível em: https://somosnosotros.com.br/. Acesso em: 05 out. 2023.

[2] BBC News Brasil. “Jesus motivacional: quem são os ‘coaches evangélicos’”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n879prr6do. Acesso em: 04 out. 2023.

[3] Cf. UOL. “Após música em post de Bolsonaro, Priscilla se diz 'contra governo de ódio’”. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/10/29/priscilla-alcantara-post-bolsonaro.htm. Acesso em: 05 out. 2023. Cf. também Extra. “Evangélica, Priscilla Alcantara critica manipulação religiosa na política: ‘Sou contra quem usa o púlpito para fazer partidarismo’”. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/evangelica-priscilla-alcantara-critica-manipulacao-religiosa-na-politica-sou-contra-quem-usa-pulpito-para-fazer-partidarismo-25581669.html. Acesso em: 05 out. 2023.

[4] Tenho desenvolvido uma tese de doutorado sobre a presença de práticas de coaching no meio evangélico, a ser defendida no primeiro semestre de 2024 junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS.


Taylor de Aguiar é Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos da Religião (NER/UFRGS). Editor assistente da Protesta y Carisma: Revista de Estudios del Protestantismo y el Pentecostalismo en América Latina y el Caribe. Contato: taylorpedrosodeaguiar@gmail.com.