O louvor como arma: explorando a Teologia do Domínio na música evangélica brasileira
Recém-descoberta por muitos analistas sociais, a assim chamada Teologia do Domínio tem servido para explicar retroativamente as ações sociais e políticas dos evangélicos no Brasil nas últimas décadas e, em tempo real, os burburinhos e algazarras da relação entre política e os evangelicalismos.
Embora não se deva assumir a Teologia do Domínio como único fator de explicação da atuação dos evangélicos, acredito que lançar os olhos e os ouvidos em direção a como os evangélicos, em sua multiplicidade, fazem cultura no Brasil possa ser útil para compreender mais um pouco da pretensão evangélica de domínio e de como ela se realiza na prática. Os louvores brasileiros certamente nos ajudam a observar essa pretensão.
Antônio Gouvea Mendonça, em seu estudo sobre a inserção do protestantismo no Brasil (1984), já mostrava que um dos modos de assimilação do protestantismo brasileiro, na virada do século XIX para o século XX, estaria em sua formulação de um protestantismo guerreiro, com características triunfalistas, embora ainda afeitas ao escapismo que adiava os ideais de felicidade do crente para o pós-morte.
Em um momento em que o protestantismo parecia de fato iniciar o seu triunfo no Brasil, Mendonça identificou a presença de cânticos que convocavam o crente para uma batalha contra o mal no tradicional hinário “Salmos e Hinos”:
Erguei-vos cristãos! O clarim já soou!
À guerra vos chama o que vos libertou.
Os lombos cingidos, nas armas pegai,
À sombra da cruz corajosos lutai. (H.M. Wright, 1890)
Embora exista já aqui a presença de um elemento bélico, estamos impedidos de afirmar que há aqui uma versão (antecipada) da Teologia da Batalha Espiritual que tanto informa a “versão” pentecostal da Teologia do Domínio, em sua acepção classicamente formulada por Peter Wagner.
Um salto histórico pode nos ajudar a verificar, em carne e osso, a presença da Teologia do Domínio no louvor brasileiro. Em meados dos anos 1990 e nos anos 2000, o ministério Diante do Trono, pertencente à Igreja Batista da Lagoinha (MG), é o exemplo de melhor acabamento, pois é capaz de unir tanto as versões reconstrucionistas desta teologia (de autores de linhagem reformada-histórica como R.J. Rushdoony e Gary North), quanto suas versões mais “pentecostais”.
Em sua tese de doutorado (2015), a socióloga Nina Rosas demonstra nas ações propriamente musicais do grupo - mas também mercadológicas, teológicas e educacionais - a presença de um discurso cujo núcleo é a intenção de “dominar” diferentes esferas da sociedade, libertando o Brasil de males diversos.
Em um “espontâneo” denominado “Marcha Profética” no álbum “Brasil Diante do Trono”, de 2001, a líder do grupo Ana Paula Valadão declara: “marchamos, Senhor, porque somos um povo livre e sobre nós está a cobertura do teu sangue. E queremos pisar sobre a terra brasileira com os olhos da fé. E declarar o poder do teu sangue sobre a nossa nação: sangue que liberta do pecado, sangue que quebra as maldições, sangue que purifica, sangue que santifica.”
A presença de uma “marcha” aqui, como menção e como forma musical (a caixa da bateria mimetiza os rufos típicos da marcha), não é coincidência gratuita. A marcha é uma forma conhecida do protestantismo brasileiro: na Harpa Cristã, tradicional hinologia da Assembleia de Deus, na edição de 1941, encontramos 58% do repertório no ritmo marcha, o que demonstra certa.
Em um álbum que se debruça “profeticamente” sobre o Brasil, o grupo Diante do Trono não deixa de manifestar sua contrariedade espiritual a tradições típicas do Brasil, como o carnaval (na faixa denominada “Palavra Profética”), ou outras religiões, como o catolicismo e religiões afrobrasileiras (identificados por André Valadão, respectivamente, como “idolatria” ou “macumba” na faixa “Cântico Espontâneo e Oração de Guerra”).
Há no protestantismo brasileiro um aspecto belicoso que parece sempre se atualizar. No louvor, esse aspecto tem sido mobilizado ao longo das últimas décadas com a intenção de domínio de diferentes esferas da sociedade. Para não correr o risco de anacronismo, vale lembrar o que nosso atual contexto histórico possui de específico capaz de fornecer aderência aos evangélicos à pretensão dominadora. Porém, tendo a história em mãos, para utilizar a tipologia cunhada por Raymond Williams, é preciso manter em vista quais são os significados e valores “residuais” ou “emergentes” que aspiram em nosso tempo à condição de “dominantes”.o tempo à condição de “dominantes”.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.