O grito de Eva: violência doméstica nos lares evangélicos
A maneira como trata seus membros mais vulneráveis revela o caráter de uma igreja. Segundo o filósofo americano Nicholas Wolterstorff, na Bíblia, os pobres, os exilados, as viúvas e os órfãos constituem o “quarteto da vulnerabilidade”. Penso que não seria exagero incluir na classe das viúvas as brasileiras invisíveis, vítimas de violência doméstica, que clamam por socorro, sem ter quem as escute.
O panorama da violência doméstica no Brasil
O Brasil é um lugar perigoso para as mulheres. Em 2018, a cada duas horas, uma mulher foi assassinada neste país que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, registra um dos piores índices globais de agressão contra mulheres - um espancamento a cada dois minutos e 180 estupros por dia. Sabe-se ainda que apenas 40% das vítimas notificam a ocorrência. Além disso, o Atlas da Violência 2020 revela que, enquanto os indicadores gerais de violência no Brasil melhoraram ao longo da última década, as mortes violentas de mulheres aumentaram 4,2% entre 2008 e 2018. As mulheres negras, justamente o público majoritário nos bancos das igrejas evangélicas brasileiras, foram as mais atingidas: a taxa de homicídio entre elas aumentou 12,4% no período, enquanto caiu 11,7% entre as não negras.
A violência doméstica nos lares evangélicos
As evangélicas aparecem em destaque nesse quadro dramático. A pesquisadora Valéria Vilhena, doutora em Educação, História da Cultura e Artes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, entrevistou muitas dessas vítimas de agressão e, em sua dissertação de mestrado, revelou que 40% delas eram evangélicas. O trabalho de Vilhena resultou no livro: Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas (Fonte Viva, 2019). Sua pesquisa analisou os relatos de mulheres acolhidas pela Casa Sofia, na zona sul de São Paulo, a maior cidade brasileira. Seu estudo viralizou, tornando-se referência nesse tema.
A pesquisa de Vilhena revela que as igrejas e suas lideranças, lamentavelmente, têm colaborado para perpetuar esse trágico cenário. Ao buscarem o pastor de sua comunidade local para aconselhamento e apoio, na esperança de escapar de uma realidade de agressões físicas e psicológicas, as religiosas são recebidas, invariavelmente, com o mesmo discurso: “Irmã, você deve orar mais, jejuar, clamar a Deus pela conversão de seu esposo”. Eles citam 1 Pedro 3. 1-2: “Do mesmo modo, mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido. Se ele não obedece à palavra, seja ganho sem palavras, pelo procedimento de sua mulher, observando a conduta honesta e respeitosa de vocês”.
Esse tipo de atitude, que trata uma questão penal com ferramentas espirituais, coloca lenha na fogueira da violência contra a mulher evangélica brasileira. Essas nossas irmãs de fé são vitimizadas duplamente: pela violência em casa e por uma leitura legalista das Escrituras, que as mantém aprisionadas, pedindo socorro e esperando somente em Deus por livramento, enquanto seus pastores é quem poderiam estar lhes ajudando.
Em minha pesquisa realizada para escrever o livro O grito de Eva, entrevistei algumas dessas sofredoras, entrando em contato pela primeira vez com um universo repleto de dor e ressentimento. Muitas tiveram suas juventudes destruídas pelo convívio com homens impiedosos, alguns inclusive empoderados pelas lideranças da igreja.
A complexa e desafiadora questão da violência doméstica
“Por que essas mulheres ficam e se submetem a isso?”, eu me perguntei muitas vezes após as entrevistas. Atrás de uma resposta, procurei psicólogos com experiência em atender cristãos evangélicos, como a analista Dora Eli Martin Freitas, de linha junguiana. Ela me ensinou que todos buscamos reproduzir em nossas casas os padrões familiares, aquilo que nos é mais cômodo.“Essas mulheres, em geral, já vêm de um contexto de violência. Em alguns casos, é a mãe dominadora e cruel; em outros, o pai autoritário ou alcoólatra e opressor. O filho ou aprende a ferir com as mesmas armas com que foi ferido, tornando-se mau e até perverso, ou se transforma numa pessoa passiva, amedrontada. Os homens que espancam suas mulheres também trazem esse histórico.”
Em algumas dessas histórias, as mães se adaptaram a uma posição subalterna e vitimizada, um comportamento que resultou em traumas nos filhos: “Eles se tornam muito agressivos ou muito passivos, se escondem. Essas mulheres mais passivas, que não conseguem externar seus desejos, podem se tornar propensas a somatizações, desde uma enxaqueca que nunca se cura até um câncer. É a forma que elas encontram de suportar. Elas não conseguem levar uma vida autêntica, nem transgredir, então acabam cometendo uma traição a si mesmas”, diz Dora Eli. “Transgredir, neste sentido, é a pessoa deixar de cumprir a expectativa dos outros sobre si mesma. É quando a pessoa enxerga o padrão a que foi submetida e tem a coragem de dizer: ‘Eu não sou e não serei esta pessoa’. É ter a ousadia de romper com essa expectativa. Essa é a verdadeira transgressão.”
Submissão: o conceito bíblico x o conceito não bíblico
Nós, como cristãos, somos chamados a servir ou a nos sujeitar uns aos outros, por temor a Cristo (Efésios 5.21). Essa convocação geral também se aplica especificamente às relações conjugais. O desafio é evitar que a obediência a esse princípio nos transforme em vítimas numa relação desequilibrada, em que predomina o exercício do domínio de um cônjuge sobre o outro.
Após esse princípio geral, o texto de Efésios 5 prossegue, descrevendo em detalhes o que espera da dinâmica específica para o relacionamento conjugal. “Mulheres, sujeitem-se a seus maridos, como ao Senhor” (Efésios 5.22). E acrescenta, logo em seguida: “Maridos, amem suas mulheres, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se a si mesmo por ela” (Efésios 5.25). Portanto, o texto mostra que à submissão da mulher deve corresponder o amor do marido por ela. Assim, segundo o conceito bíblico de submissão, a mulher não deve se submeter à violência do marido, mas, sim, ao amor dele.
A psicologia também nos ajuda a entender melhor o conceito bíblico de submissão. “Eu entendo”, afirma Dora Eli, “que servir o outro não é se sujeitar ao poder do outro. Trata-se de demonstrar a disponibilidade de ajudar o outro, independentemente de quem seja este outro. Mas não é sujeitar-se ao papel que ele representa”. “Muitas vezes esposo e esposa são apenas papéis pré-estabelecidos, cheios de estereótipos, e para cumprir esses papéis, as pessoas precisam virar ‘personas’, ou seja, atores, distanciando-se do seu eu mais profundo. Transgredir, neste caso, é dizer não aceito viver como um ator.”
Para Dora Eli, muitos pastores apenas reforçam os estereótipos femininos, os “scripts” estabelecidos há séculos para as mulheres, limitando-as às caixinhas da religião ou mesmo da cultura. Alguns ainda estão restritos ao “kkk” do ditado alemão, que diz que às mulheres cabem somente kinder, küche und kirche, ou seja, filhos, cozinha e igreja.
A compreensão do conceito bíblico de submissão também recebe ajuda do universo jurídico. O trabalho da advogada Priscila Diacov como mediadora de conflitos familiares em São Paulo despertou nela o desejo de contribuir para levar informação às igrejas. Ela dá palestras, alertando os fiéis e os líderes comunitários sobre as diferentes formas de violência contra a mulher.
A diferença na fala das mulheres evangélicas em relação às não evangélicas está sempre relacionada às ideias opressoras, como o dever de submissão ao marido a qualquer custo, a obrigação de ter que perdoar o parceiro por seus atos violentos, a culpa por prejudicar sua reputação dentro da comunidade, no caso de vir a denunciá-lo, o medo de ser julgada por estar indo contra a Palavra de Deus. Elas também se sentem culpadas por não orarem o suficiente para que o cônjuge mude de comportamento e, no caso de pedirem o divórcio, julgam-se as responsáveis por destruir a família.
Portanto, o problema da violência doméstica nos lares cristãos decorre de uma visão equivocada e não bíblica do conceito de submissão. Com base nesse conceito, os pastores e líderes muitas vezes estão ajudando a formar e a disseminar modelos mentais distorcidos e difíceis de serem tocados. Na visão de Daniela Grelin, diretora do Instituto Avon, organização filantrópica com diversos programas de combate à violência contra a mulher, para que haja avanços maiores dentro dessas comunidades, essas crenças que depreciam a figura feminina — e que nada têm de bíblicas — precisam ser confrontadas e as distorções, trazidas à luz: “Na essência da cultura judaico-cristã está a ideia da dignidade da pessoa humana criada, homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus. Este é o padrão que deve ser ensinado.”
Como líderes e pastores cristãos podem contribuir para mudar esse cenário
A violência contra a mulher não é um problema só das mulheres, mas de todas as esferas sociais: famílias, igrejas, empresas e das autoridades públicas constituídas. Todos podemos desempenhar um papel de conscientização em nossas áreas de influência. Segundo Daniela Grelin, da mesma maneira que não podemos deixar que apenas os negros lutem pelo fim do racismo, ou relegar apenas aos judeus lutarem contra o antissemitismo, assim também não é possível relegar somente à mulher o combate à violência. “É necessário engajar os homens nesta mudança”, defende a executiva do Instituto Avon.”
A advogada Priscila Diacov acredita que iniciar um trabalho de acolhimento às vítimas de agressão dentro das igrejas depende de um forte engajamento: “é um trabalho complexo, de muitas mãos, e depende de capacitação de pastores e líderes eclesiais.” Acontece que muitos desconhecem as diferentes formas de abuso e estão mal informados sobre questões de gênero e violência infantil. Com apoio de voluntários e membros das áreas de saúde mental, direito ou assistência social, as igrejas poderiam oferecer pequenos espaços seguros de escuta e acolhimento. “Importa que essas mulheres sejam escutadas, acolhidas e que recebam orientação adequada para preservação da vida e de sua dignidade.” Além disso, Diacov observa que “os agressores também precisam de ajuda”. Para a advogada, “precisamos de homens maduros e capacitados para formar grupos de conversa focados na escuta e mentoria, pois muitos destes agressores trazem” feridas profundas, fruto dos abusos sofridos por eles na infância.
A violência doméstica, infelizmente, é um problema social gravíssimo e generalizado, desafiador tanto para países não desenvolvidos da América Latina como para os mais ricos, do Hemisfério Norte. A igreja tem, sim, força moral e conteúdos capazes de reduzir esses terríveis indicadores, tornando-se parte da solução, e não mais do problema. Para isso, é essencial que os ensinos que tratam da submissão feminina sejam íntegros, convocando não somente as esposas a terem uma atitude de companheirismo amoroso e de respeito para com seus maridos, mas também os maridos, a amarem suas mulheres como Cristo amou a Igreja, e por ela se sacrificou.