O êxodo sem fim da cracolândia

O êxodo sem fim da cracolândia

O noticiário dos últimos dias sobre a cracolândia demonstrou mais do que uma bateção de cabeça entre Prefeitura e Governo do Estado de São Paulo. É a prova concreta de que não existe uma política pública para os dependentes químicos que se encontram nos fluxos de uso de drogas nas ruas. Após o espalhamento da cracolândia há pouco mais de um ano, promovido pela Prefeitura sob a justificativa de “facilitaria” a abordagem social, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) tentou realocar os usuários de drogas em um único lugar, no baixo do viaduto Orestes Quércia, no bairro do Bom Retiro. A estratégia fracassou menos de 24 horas depois e os dependentes retornaram para as ruas centrais da cidade.

O resultado malsucedido não impediu a apresentação de ideia semelhante: transferir a cracolândia para a Rua Prates, também no Bom Retiro, onde está localizado o HUB de Cuidados em Crack e Outras Drogas, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) especializado em álcool e drogas, entre outros equipamentos municipais. Diante das críticas e das dificuldades logísticas de reunir os fluxos fragmentados pela cidade, o governador desistiu do plano e informou que “novas possibilidades para solucionar o problema da cracolândia estão sendo estudadas e serão divulgadas em breve”.

O governador também prometeu a realização de um censo dos frequentadores das cracolândias espalhadas para “separar dependentes químicos de traficantes” para depois “realizar uma abordagem individualizada”. No discurso, será uma ação de assistência social. Na prática, o que vem acontecendo é um “cadastro” (leia-se fichamento) dos dependentes químicos pela Polícia Civil.

O tema cracolândia tem sido o maior case de fracasso do poder público de São Paulo. As constantes mudanças dos programas apresentados pelos gestores municipais e estaduais ao longo dos anos só provam como a assistência social é secundarizada, marginalizada, facilmente descartada e muito longe de ser uma política pública efetiva. Como apontou a pesquisadora Aldaíza Sposati, a assistência social no Brasil está mais ligada ao assistencialismo de ocasião, como um pronto-socorro que “não tem a preocupação com ‘a doença, sua cura ou prevenção’, mas com a redução, ainda que precária e imediata, do ‘grau de gravidade’ da situação do doente”.

O poder público facilmente aplica o estigma da criminalidade aos usuários, que são tratados como “não-pessoas”, indivíduos totalmente desumanizados. O cenário devastador não gera empatia nem com quem busca levar algum conforto aos dependentes. Padre Julio Lancellotti e o pastor Daniel Chechio, entre outros representantes de grupos voluntários religiosos, relataram mais de uma vez sobre as dificuldades impostas pela Guarda Civil Metropolitana para distribuir alimentos aos dependentes químicos. Várias vezes ouviram que as ações de solidariedade ajudam a fomentar o tráfico. As acusações não vêm apenas das forças policiais, mas também do legislativo. Padre Julio foi atacado verbalmente pela ex-deputada Janaína Paschoal e pelo ex-deputado estadual Arthur do Val que o chamou de “cafetão da miséria”.

O coletivo A Craco Resiste, que trabalha com redução de danos, também foi alvo de acusações por parte do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) que alegou que os ativistas incentivam o uso de drogas. A antropóloga Alba Zaluar alertou que relacionar ações junto aos pobres com a criminalidade é desviar a atenção dos problemas que deveriam ser controlados de fato e direciona o debate na direção contrária das políticas públicas. Mas o que temos visto são ações que forçam os dependentes a um êxodo constante pelas ruas da cidade, empurrados de um lado para outro com o uso da força policial.

O sociólogo Paulo Escobar, do Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga, critica a política de deslocamento dos usuários. Aporofobia é o termo cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina para a aversão aos pobres. Escobar prefere a versão aportuguesada pobrefobia, por ser mais facilmente assimilada. E acusa o poder público de não ter uma real preocupação com os seres humanos que estão sendo afetados. “Há apenas uma limpeza social”.

Segundo ele, é necessário entender que a cracolândia é uma questão social. “A Prefeitura acreditava que a política do deslocamento era a solução. Mas ao tentar achar um lugar para ocultar os usuários pobres, apenas plantou repressão e colheu fracasso. O governador Tarcísio procurou o mesmo caminho e promete colher fracasso de novo. A cracolândia é feita de seres humanos, não é um espaço físico, são as pessoas. Pode haver políticas mais humanas que diminuam a quantidade de pessoas, mas não nesse sistema atual”.

Segundo a Bíblia, o êxodo do povo de Israel pelo deserto durou 40 anos. Por aqui já se vão pelo menos 30 anos de degredo resultante de projetos e planos frustrados. “O êxodo da cracolândia é o êxodo do fracasso, pois enquanto não houver projetos que visem o usuário pobre em sua humanidade, diversidade e pluralidade, com soluções imediatistas, se continuará patinando”, conclui Escobar.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.