A esquerda está em guerra contra evangélicos?
“Todo reino dividido contra si mesmo é devastado” (Mateus 12:25a).
As palavras de Jesus são cortantes. Para um grupo de religiosos que apregoava a supremacia da cultura e religiosidade judaica sobre as demais expressões étnico-culturais, e que nutria expectativas sediciosas em relação a Roma, ouvir de Jesus que eles estavam jogando contra suas próprias aspirações soou como o “fim da picada”. Parece que pessoas que se engajam na luta, no inconformismo, não conseguem se despir do estado de beligerância no qual se encontram.
Um dos previsíveis resultados do estado de beligerância é a promoção da ignorância. Esta pode vir em declarações infelizes ou mesmo na esquiva de assuntos que mereceriam uma ênfase maior.
Exemplo do primeiro caso foi a desastrosa fala da professora Márcia Tiburi ao menosprezar a experiência religiosa e os estudos de religião que dão conta sobre o fenômeno da glossolalia. Fruto do preconceito que habita certos setores da esquerda, Tiburi acabou prestando um desserviço ao mesmo tempo em que assinalou sua fragilidade acadêmica ao transpor fronteiras que não lhe são usuais. O fenômeno de línguas está na gênese da compreensão da experiência pentecostal e deve ser respeitado como tal, afinal a experiência religiosa, como bem nos lembra Rudolf Otto e Roger Bastide (entre outros) é irredutível.
Tiburi poderia ter caminhado, não sendo religiosa, pelas soluções apresentadas pelas Ciências Sociais aplicadas à religião. Em tais estudos ela se depararia, por exemplo, com a alternativa apresentada por pesquisadores de campo que localizam o chamado dom de línguas com a vigência de estruturas fortemente hierarquizadas de poder, onde a voz da congregação é amordaçada. A glossolalia, nesses casos, seria a forma catártica encontrada para subverter a opressão e falar.
Infelizmente ela optou pelo viés do preconceito. O desserviço é gigantesco, especialmente para os que sustentam, dentro do campo religioso, que a esquerda não tem interesse em cozinhar os evangélicos para canibaliza-los no jantar...
O outro aspecto que opto por destacar aqui é a perda de energia com brigas internas, obnubilando boas notícias e iniciativas do governo. O governo tem deixado de faturar com boas notícias gastando tempo se explicando e apagando fogueiras internas. As coisas pioram quando têm aparência de Déjà-vu, como nesta recente questão envolvendo a Ministra Marina Silva e os demais quadros do PT no governo. Ao trocar chumbo com seus pares, o governo se mostra dividido e fadado (se persistir no erro) a sucumbir.
A esquerda precisa curar sua alma beligerante. É preciso aprender a respirar, a desfrutar da paz das conquistas, dos avanços, pois eles são resultado de muito empenho e não de canetadas. Já passou da hora dela entender que há necessidade de manter o foco nos adversários, evitando as disputas internas. Lembro agora do testemunho de uma evangélica envolvida na luta contra a ditadura e que por isso foi presa e torturada, afirmando o amplo espectro da luta: uns com armas, outros com a propagação de ideias (a exemplo de muitos professores universitários), mas todos contra o mesmo adversário.
Não esquerda renhida. Não é porque alguém que está na mesma batalha que você não tem a mesma intensidade na luta que este se torna seu adversário. Nem porque não possui a mesma radicalidade que lhe habita. Lembre-se: existem diferentes gradações, “cinquenta tons” de vermelho na esquerda. Também não é porque você acha que a visibilidade de alguém é indevida, que você precisa apontar sua mira para abater quem luta com você. A vaidade não fica bem para quem combate o neoliberalismo. De igual modo, é preciso evitar o colapso das poucas pontes existentes nesse Brasil polarizado; caso contrário, o destino será a “bolhificação” da esquerda, com consequente eliminação da fraternidade que deveria existir entre os que comungam dos mesmos ideais, culminando na inviabilização política do projeto de país que ela defende. O maior interessado no fomento destas lutas internas é a extrema-direita.
É preciso desarmar “os espíritos” na esquerda. Afinal, quem cultiva a beligerância acaba lutando e ferindo os seus. Um reino ferido, dividido, lembra Jesus, não subsiste.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.