O crescimento evangélico e a reprodução de uma sociedade violenta
Antes de problematizarmos a relação das igrejas evangélicas pentecostais com a violência política no tempo presente, é necessário que façamos uma breve reflexão histórica da violência política no Brasil e a incidência dessa manifestação em nosso cotidiano.
Destaco primeiramente que a violência política no Brasil é um elemento com profundas raízes históricas e as cenas observadas em nosso cotidiano devem ser problematizadas a partir do maior acesso as informações, e não somente como uma nova prática social.
Dados do Atlas da Violência, do Núcleo de Estudos da Violência, do Mapa da Violência, do Laboratório de Estudos da Violência, do Fórum de Segurança Pública e tantos outros indicadores apontam para a violência como uma manifestação de longa duração em nossa sociedade e não como consequência do tempo presente.
Durante os anos da Ditadura Militar, a violência política, já presente em tempos anteriores, ganhou novos contornos com os agentes do estado financiando torturas, censuras, perseguições de adversários, violações dos direitos humanos, assassinatos, ameaças, prisões arbitrátias, etc.
O próprio estado foi o agente da violência política. Sindicatos, associações civis, movimentos sociais, agentes políticos, intelectuais, estudantes, jornalistas e diversos outros sujeitos sociais sofreram com a violência política dos generais que saltaram dos quarteis para os espaços de poder com a brutalidade própria de quem pisava com os coturnos nas cabeças dos adversários e os aniquilava.
O processo de redemocratização ainda em curso em nosso país não conseguiu até o momento assegurar o respeito a diversidade e a pluraridade, muito menos a tolerância, em consequência, testemunhamos atos diversos de intolerância e violência, seja no aspecto político, nas igrejas ou em outras áreas da dinâmica social.
Podemos enumerar diversos atos de violência nos últimos anos, destaco aqui apenas dois fatos, embora existam inúmeros. O primeiro foi o lamentável episódio que ocorreu em 2010 que resultou no assassinato do prefeito de Jandira, Walderi Braz Paschoalin (PSDB) após conceder entrevista em uma rádio local da cidade. O som dos disparos dos mais de 15 tiros que assassinaram o prefeito foi captado durante a transmissão do programa que Pascholin tinha acabado de participar.
O segundo foi em 2018, quando a vereadora Marielle Franco, filiada ao PSOL, foi assassinada a tiros em um atentado no centro do Rio de Janeiro, junto com seu motorista, Anderson Gomes. Até hoje não sabemos quem mandou matar Marielle e qual a motivação desse crime brutal que chocou o mundo.
A ausência de respostas dos mandantes do crime e das suas motivações contribuem para que outros sejam realizados, pois ao lado da violência nossa de cada dia, habita a impunidade aos poderosos.
A violência é uma marca estruturante da sociedade brasileira, políticos, ambientalistas, militantes dos direitos humanos, religiosos, sindicalistas, indigenistas, estudantes e diversos outros atores sociais pagaram com a própria vida em decorrência de suas lutas. O assassinato é uma via comum na disputa de ideias em nosso país. Lamentavelmente, as divergências terminam em sangue e em impunidade.
É a partir dessa breve contextualização que devemos agora analisar a fala do pastor vociferando ódio aos ministros do Supremo Tribunal Federal em um culto de uma igreja evangélica pentecostal.
O vídeo do pastor Tupirani da Hora Lores, líder da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo, pedindo a morte de ministros do STF manifesta um conteúdo comum na disputa de poder entre os atores diversos que disputam o capital político, entre eles, os agentes religiosos. Entretanto, com a expansão do acesso aos meios de informação, esse conteúdo/oração foi gravado e divulgado, colocando esse debate em pauta, mas insisto aqui que essa não é uma prática recente, mas sim, enraizada em nossa história.
Em um culto da Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo, vestido com uma camiseta com a frase NÃO SOU VACINADO", Lores clama a Deus pela morte dos "malditos ministros do STF". Lores é conhecido por vociferar ódio e intolerância a homossexuais, negros, defensores dos direitos humanos e progressistas, agora, viralizou novamente, dessa vez, pedindo, entre outras coisas, que os ministros do Supremo Tribunal Federal sejam "exterminados" e que "seus ossos apodreceçam".
Outro ponto de destaque no vídeo do pastor Tupirani da Hora Lores é instrumentalização do discurso religioso para a violência política. Se este é um aspecto comum em nossa história, não podemos deixar de destacar que episódios assim têm se avolumado a cada dia e ganhando força nos compartilhamentos das diferentes mídias digitais.
A oração de Lores apresenta o desafio para a costrução da alteridade, defesa da diversidade, direitos humanos e tolerância. Lores traduz o sintoma de uma sociedade violenta, de sujeitos que instrumentalizam o discurso religioso para o poder e interesses privados.
É necessário pontuar que o universo evangélico, com destaque ao pentecostalismo, vive uma ambiguidade. Por um lado, é um ambiente de conformismo e perpetuação das mazelas sociais existentes. Por outro, é um canal de resistência. Conformismo porque a medida que o pentecostalismo cresce e se estrutura nos diversos segmentos sociais, assistimos a uma acomodação e perpetuação às disparidades sociais, tais como a profunda desigualdade e concentração de renda, o racismo estrutural, o machismo, a homofobia e a intolerância.
Por outro lado, os mais diversos dados apontam que os evangélicos pentecostais se concentram nos grandes centros urbanos, em sua maioria, entre as mulheres, os negros, os menos escolarizados e os mais pobres, daí ser um ambiente de esperança e resistência.
Quando falamos de evangélicos e/ou pentecostais, não podemos deixar de pontuar a pluralidade manifestada neste ambiente. Portanto, de modo algum esses indivíduos devem ser singularizados, ou seja, as grandes e midiáticas igrejas não traduzem o todo, tampouco, os pastores mais midiáticos e lideranças que operam as rádios, grades de televisão ou grandes mídias digitais.
Os pentecostais são pulverizados nas mais diversas partículas de igrejas, em sua maioria, as "garagens divinas". Pequenos ambientes de fé, com no máximo 50 pessoas, em sua maioria, pequenos núcleos familiares; igrejas sem placas, sem institucionalização, sem regulamentação jurídica, sem espaços na rádio ou TV. Igrejas que não operaram o poder o político, sem vinculação a partidos e/ou parlamentares. Em sua maioria, são as igrejinhas das "quebradas de fé" que se multiplicam nas periferias e são dependentes quase que absolutamente do carisma pessoal de seu líder.
Desse modo, o pentecostalismo não deve ser traduzido em Silas Malafaia, Edir Macedo, Waldomiro Santiago, RR Soares, Marco Feliciano ou outros figurões; embora estes sujeitos tenham um importante capital político, religioso e econômico, eles não são em absoluto a representação dos evangélicos no Brasil.
A oração do pastor Tupirani da Hora Lores pedindo a morte dos Ministros do STF não pode ser analisada de modo isolado, mas sim, como consequência de uma sociedade conservadora, intolerante e violenta.
Pesquisando igrejas pentecostais de periferia, observo uma narrativa de guerra e uma literatura voltada aos textos do Velho Testamento. Isso corrobora para um imaginário de guerra do bem contra o mal, justificando, entre outras coisas, a barbárie da violência política, da homofobia, do machismo, da intolerância e racismo.
Na ideia de "guerra contra o mal" e "defesa da família", o fundamentalismo avança em cenas de violência, vitimiza homens e mulheres que lutam em defesa de uma sociedade justa, tolerante e plural, corrobora para atrocidades e ganha espaços entre os perversos que instrumentalizam o discurso religioso para interesses de poder. Insisto que não podemos deixar de sinalizar o fato de que estamos tratando de um tipo específico de pentecostalismo e não de seu todo.
As igrejas ou lideranças que disputam o poder político e cooptam o discurso religioso não representam os evangélicos e/ou pentecostais em sua totalidade, mas sim, um fragmento perigoso que ganha cada vez mais espaço e que encontrou em Jair Bolsonaro uma espécie de representante "divino" para suas pautas conservadoras.
Bolsonaro é a consequência de uma sociedade conservadora, não a causa. Os líderes religiosos que abraçam o bolsonarismo, estiveram com Lula em 2002 e 2006 e com Dilma em 2010. Marcelo Crivela, bispo licenciado da Universal e linha de frente do bolsonarismo vigente, foi Ministro da Pesca no Governo Dilma, portanto, a pauta é o poder e não apenas a questão moral ou "defesa da família".
Não podemos acreditar que são os evangélicos os responsáveis pelo o conservadorismo, intolerância e violência presentes no cotidiano. O racismo, a homofobia, o machismo, a intolerância, a violência e o conservadorismo estão presentes no Brasil há cinco séculos, a esmagadora maioria desse período, de hegemonia católica.
Não podemos ser inocentes e acreditarmos que o Brasil conheceu o racismo, a intolerância, a violência, a homofobia, o machismo e o conservadorismo nas últimas décadas, em que os evangélicos ganharam destaque e notoriedade. Não! Essa é uma marca do tecido social brasileiro, os evangélicos e/ou pentecostais apenas a reproduzem.
Essa reprodução é a marca de uma sociedade que não encontrou a democracia de fato, que caminha a passos mancos para a alteridade, laicidade, tolerância e diversidade, de uma sociedade que tem profunda dificuldade para o diálogo fraterno e para o debate plural.
Nesse movimento de reprodução do caos, infelizmente, lideranças religiosas caminham juntas com os poderosos para a instrumentalização do discurso religioso para o próprio poder.