O corpo das mulheres também é templo do Espírito Santo

Muitas mulheres sofrem violência e ficam caladas. Se denuncia o marido na delegacia, ela é “colocada no banco”, numa espécie de banimento. E ainda sofre com o julgamento de outras mulheres: “você não deveria ter feito isso, você tem que orar pela mudança, orar para Jesus fazer a obra”.

O corpo das mulheres também é templo do Espírito Santo
Campanha promovida pela Rede de Mulheres Negras Evangélicas

Na semana passada terminei de ler o livro O grito de Eva – a violência doméstica em lares cristãos, de Marília de Camargo César. Não foi uma leitura fácil. Minha colega jornalista entrevistou mulheres cristãs, abusadas e agredidas por seus maridos, que ao buscar ajuda junto aos líderes de suas igrejas recebiam apenas o conselho: ore pela mudança do seu esposo.

Marília escreve que “muitas das vítimas de violência doméstica têm somente em Deus a esperança de escape de uma realidade de agressões físicas e psicológicas”. No entanto, o relato das entrevistadas é claro: muitas mulheres sofrem violência e ficam caladas. Se denuncia o marido na delegacia, ela é “colocada no banco”, numa espécie de banimento. E ainda sofre com o julgamento de outras mulheres: “você não deveria ter feito isso, você tem que orar pela mudança, orar para Jesus fazer a obra”.

Muitos versículos bíblicos são apresentados pelas lideranças das igrejas para colocar nas costas das mulheres a responsabilidade pela mudança do ciclo de violência que vivem. Como esta passagem da carta de Pedro: “Do mesmo modo, mulheres, sujeitem-se a seus maridos, a fim de que, se alguns deles não obedecem à palavra, sejam ganhos sem palavras, pelo procedimento de sua mulher, observando a conduta honesta e respeitosa de vocês” (1 Pedro 3:1-2).

A submissão da mulher é a receita repetida à exaustão. A carta de Paulo aos Efésios é usada como exemplo, mas apenas os versículos que interessam. No entanto, o texto oferece uma sujeição mútua para maridos e esposas, como observou o pastor e teólogo Ed René Kivitz, entrevistado para o livro de Marília. Vejamos: “Sujeitem-se uns aos outros, por temor a Cristo” (Efésios 5:21). Mas as lideranças preferem apenas destacar a parte em que mulheres devem se sujeitar aos maridos. E quase nunca completam o conselho dado aos homens pelo apóstolo: “Da mesma forma, os maridos devem amar as suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher, ama a si mesmo” (Efésios 5:28).

A sujeição, a submissão, o comportamento ideal feminino cristão não têm ajudado essas mulheres a se livrarem do jugo de maridos violentos. Nem ao menos conseguem se sentir acolhidas diante de uma congregação indiferente ou que apenas julga o sofrimento rotineiro como algo que elas mesmas provocaram. É a mulher quem tem que se controlar, que se submeter se quiser ter um casamento pleno e feliz.

O corpo como templo do Espírito Santo (1 Coríntios 6:19) é outro ingrediente dessa receita de controle e submissão que sempre desanda. Ou seria o corpo das mulheres um templo que pode ser profanado, violado em nome do controle, da submissão e da obediência a determinados versículos? Para inverter essa ordem, a Rede de Mulheres Negras Evangélicas criou, em 2022, a campanha Meu Corpo é Templo, disponível em https://www.negrasevangelicas.org/post/meu-corpo-e-templo, com vídeos, áudios, posts e materiais com passagens bíblicas que tratam da justiça reprodutiva, abrangendo planejamento familiar, direitos sexuais e reprodutivos, saúde da mulher, pobreza menstrual e violência de gênero.

A campanha foi desenvolvida a partir da realidade, muitas vezes mais dura, das mulheres negras. Afinal, elas estão mais sujeitas a violências diversas. Mas, sem dúvida, abrange os dramas vividos por todas que sofrem. Ter a consciência de que a Bíblia é fonte também de proteção é algo que pode fortalecer o ânimo e a fé dessas mulheres.

Por isso, é fundamental uma leitura progressista dos textos sagrados, como defende Marília César. Um de seus entrevistados, o pastor e teólogo Valdinei Ferreira, completa: “se há igualdade jurídica entre homens e mulheres numa sociedade, fica difícil sustentar a inferioridade dentro do lar ou da igreja”.

A campanha Meu Corpo é Templo também tem efeito libertador, como destaca um de seus textos: “A violência contra o corpo das mulheres é violência contra o próprio Deus. E nenhuma pessoa pode interferir em suas escolhas, mulher, nem marido, nem pai, nem pastor ou líder religioso. Nossos corpos são sagrados, templo do Senhor e nós temos o direito de sermos respeitadas”. Seu corpo é templo, mulher!

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.