Não existe narco pentecostalismo em favelas hoje
Narcopentecostalismo”, “narcorreligião”, essa terminologia, além de sensacionalista é incorreta por fazer parecer que se trata da existência de uma religião específica de traficantes ou uma religião para traficantes.
Recentemente uma publicação deu visibilidade ao termo “narcopentecostalismo”. Seria correto do ponto de vista empírico e sociológico nomear a aproximação de traficantes de drogas de redes evangélicas como narco pentecostalismo? Moradores de favelas ou traficantes usam essa expressão para falarem sobre o que vivem cotidianamente? A resposta para as duas perguntas é não.
Essa terminologia, além de sensacionalista é incorreta por fazer parecer que se trata da existência de uma religião específica de traficantes ou uma religião para traficantes. Mas nem se encontram hoje igrejas cuja liderança e membresia sejam de traficantes na ativa e muito menos podemos falar de igrejas conduzidas por pastores que sirvam exclusivamente a traficantes. A aproximação desses traficantes, no mais das vezes, acontece pela demanda por proteção ou pelos valores morais de referência que partilham por serem moradores de áreas cuja presença evangélica é dominante. Há os que têm participação intensiva em igrejas, como alguns que entrevistei em Acari, mas são minoria.
Desde a publicação do meu livro “Oração de Traficantes: uma etnografia” algumas coisas mudaram no cenário religioso e do crime violento em periferias cariocas. Está mais clara a hegemonia de evangélicos no território, sobretudo de pentecostais, com um número maior de igrejas, com uma presença maior na paisagem sonora com cultos celebrados em alto volume, nas caixas de som em comércios locais tocando música gospel, com pinturas em muros de casas, escolas, comércios e quadras.
Na relação de traficantes com as redes evangélicas identifico a continuidade na relação de vários deles solicitando orações, financiando cultos, eventualmente participando deles. A busca por proteção entre traficantes sempre ocorreu e a solicitação dela através de pastores e missionários evangélicos ocorre com mais frequência hoje em razão da predominância desses religiosos no local. Observo também que falar em religião em favelas hoje é um tema sensível. Se quando eu estava realizando o campo a violência era um tema difícil de tratar com moradores e com traficantes, o tema da religião hoje também se tornou difícil para o pesquisador abordar. A auto identificação como “traficante evangélico” não era vista em minha pesquisa e sempre observei que isso causava muito incômodo entre evangélicos que faziam questão de diferenciar o “verdadeiro crente” daquele que “não dá bom testemunho”, que polui moralmente os já estigmatizados evangélicos moradores de favelas e periferias que faziam desta identidade religiosa um capital a produzir uma diferença positiva sobre suas imagens públicas.
O caso do Peixão, criador do Complexo de Israel, tem suas singularidades. Viviane Costa diz que ele se auto intitula “traficante evangélico”. Outro elemento atribuído a este caso como excepcional é o uso da bandeira de Israel. Ela foi usada em outras favelas antes das pinturas no Complexo de Israel que começaram em 2017. Parece algo extraordinário, mas essas referências não são novas em favelas e periferias. Bailes funks e grupos armados muitas vezes se identificam como “Baile da Colômbia”, “Tropa da China”, “Estilo Bagdá”, “Estilo Afeganistão” etc.. Em todos os casos, a referência à força bélica das nações é identificada. No caso do uso da bandeira de Israel, além dessa Israel Imaginária, como analisa Michel Gherman, bélica, forte, temos também uma referência religiosa não judaica, mas cristã e isso corresponde a um fenômeno que eu e outros pesquisadores da religião estamos acompanhando.
É bom lembrar que os traficantes que se auto declaram de um “exército de Jesus” não se declaram necessariamente evangélicos porque sabem que a vida que levam no crime inviabiliza moralmente esta produção de identidade. Apresentam-se como de Jesus na medida em que fazem uma “defesa do território” como “soldados” atuando contra forças materiais e espirituais consideradas adversárias. Mas isso não quer dizer que sejam “traficantes evangélicos”. Esta nomeação é mais externa ao campo, uma tentativa de generalizar um fenômeno que tem variantes e que não corre no tempo em escala linear de uma religiosidade a outra sem combinações que escapam às falas simplistas.
Nesse sentido, embora haja traficantes próximos a redes evangélicas em favelas e periferias hoje, há um contingente significativo e muito menos alardeado que continua cultuando entidades e orixás da umbanda e candomblé. Isso é alvo de pesquisas recentes que estamos conduzindo no LePar – laboratório de estudos sócio antropológicos em política, arte e religião da UFF. É sempre importante ter muita responsabilidade acadêmica e social no tratamento desses temas para não contribuirmos com o acirramento de ódios e preconceitos.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Christina Vital da Cunha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Coordena o LePar – Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião e é editora do periódico Religião & Sociedade (https://www.scielo.br/j/rs/) além de autora do livro Oração de Traficante: uma etnografia e co-autora deReligião e política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTS no Brasil (2012), entre outros livros e artigos em jornais, revistas e periódicos nacionais e internacionais. Citação VITAL DA CUNHA, Christina. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4867-1500