Mais uma morte em um lugar que se apresentava como espaço de cura

Mais uma morte em um lugar que se apresentava como espaço de cura

Efatá foi uma palavra de cura usada por Jesus, conforme relatado no evangelho de Marcos (7:34). É também o nome de uma comunidade terapêutica localizada em Cotia (SP) em que um dependente químico foi morto depois de ter sido espancado porque estava em surto e precisaria “ser contido”. Um outro acolhido, também um dependente químico e que trabalhava como monitor em troca do acolhimento, aplicou o corretivo. Ali Efatá virou uma palavra de morte. 

O caso não é isolado. O retrato das comunidades terapêuticas no Brasil, salvo raras exceções, são casas montadas por pessoas que até podem ter o desejo de ajudar. Mas não possuem qualificação técnica nem condições de manter uma equipe minimamente profissional. Ter ex-acolhidos realizando tarefas de forma voluntária ou pessoas que trocam o acolhimento pelo trabalho dentro das casas é a regra.

Uma comunidade terapêutica não é uma clínica de saúde e jamais poderia aceitar uma pessoa em surto ou em uma internação involuntária. O modelo exige, obrigatoriamente, que o dependente químico aceite voluntariamente ficar ali. Mas, diante da dificuldade em encontrar vagas nos serviços públicos, famílias buscam desesperadas por um atendimento de qualidade que não existe.

Não existe um órgão fiscalizador das comunidades terapêuticas no Brasil. A Efatá atuava de forma irregular, segundo a Prefeitura de Cotia. Precisou alguém morrer para o espaço ser fechado. Mesmo assim, sem um programa público efetivo de atenção à dependência química, governos em geral têm se limitado a financiar apenas esse modelo, que recebe verbas municipais, estaduais e federais. Muito mais que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) que prestam atendimento ambulatorial público e profissional, mas que se encontram sucateados ou sobrecarregados pela falta de verbas.

O fortalecimento político desse tipo de atendimento aconteceu a partir de 2011 com a formação da Frente Parlamentar Mista de Apoio às Comunidades Terapêuticas, um filhote da chamada Bancada da Bíblia. A criação do Programa Recomeço pelo Governo do Estado de São Paulo em 2013 acabou por dar um “selo de qualidade” ao atendimento feito por essas casas, principalmente as que são vinculadas a grupos religiosos por “trabalharem o desenvolvimento da pessoa atendida por meio da disciplina, laborterapia e espiritualidade”. 

Por ser um programa estruturado, com metas, critérios e normas, o Recomeço chancelou as comunidades terapêuticas como "o único modelo que dá certo", como ouvi mais de uma vez. O programa mudou de nome em 2023 com a posse do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Passou a se chamar Política Estadual sobre Drogas, mas continua privilegiando o atendimento em comunidades terapêuticas religiosas e não tem clínicas de saúde, por exemplo.

Na área da saúde, o governo estadual tem oferecido apenas o que chamam de “internações para desintoxicação” ou internações involuntárias a pedido de familiares ou responsáveis. Para isso, tem usado leitos hospitalares que não necessariamente são aptos para atender dependentes químicos, principalmente se estiverem em surto. Só mais problemas: as internações chegam a 40 dias, no máximo. Porém, a média tem ficado em 20 dias. Qualquer pessoa que trabalha com recuperação de dependentes químicos sabe que esse tempo é exíguo para que se alcance a desintoxicação de fato. E está bem abaixo do que é definido na lei 13.840/2019, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que determina prazo máximo de 90 dias de internação.

Para piorar o cenário, a imprensa tem noticiado casos de violência física no equipamento que é a porta de entrada do programa estadual, o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas(localizado no bairro do Bom Retiro, região central da cidade). Ex-funcionários relataram ao jornal Folha de S. Paulo que “presenciaram usuários sendo arrastados, carregados pelas pernas e braços, e feridos com chutes pela equipe de segurança” e que “que a direção da unidade é conivente com as agressões”. 

O Hub é gerenciado pela organização social Associação Paulista para o Progresso da Medicina, que também é gestora de vários equipamentos públicos de saúde. O presidente da entidade é o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que foi o coordenador do Programa Recomeço desde a criação em 2013 até a extinção em 2023. A direção da Associação nega os casos de violência, mas os ex-funcionários ouvidos pela Folha de S. Paulo apresentaram mensagens em que a direção pede para a equipe não interferir na ação dos seguranças do Hub. 

Como se a situação já não fosse suficientemente ruim, agora vem à tona um sistema de benefício da Polícia Militar que dá um dia de folga remunerada para o policial que alcançar 100 pontos, conforme ações que fazem parte da rotina de trabalho, como a prisão de um procurado pela Justiça, que conta dez pontos. E concede 15 pontos para o PM que convencer usuários de drogas a passarem pelo Hub. O governo estadual justificou que os policiais militares fizeram um curso de capacitação para o “atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade”. 

Para validar os pontos é necessário enviar um relato e uma foto com o dependente químico em frente ao equipamento. A Folha de S. Paulo teve acesso a um desses registros de uma abordagem a um homem que disse ser dependente químico há sete anos: “a equipe o informou e orientou sobre o programa de acolhimento do governo oferecido pelo Hub. Ao tomar ciência, ele demonstrou interesse no tratamento, e a equipe prontamente realizou apoio na condução até o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do governo de SP".

De uma hora para outra, os policiais militares passaram a ser mais eficientes na abordagem do que as equipes de saúde e assistência social que atuam nas ruas de São Paulo? Claro que não. Isso só piora o processo de internações relâmpago que não resolvem a dependência química e só jogam dinheiro fora. E ainda induzem policiais militares a fazerem um trabalho que não faz parte de suas atribuições em troca do bônus da folga remunerada. Benefício para os PMs tem que ser condições dignas de trabalho, equipamentos adequados e salário compatível com a função. 

Os casos citados acima só demonstram o fracasso do poder público em lidar com o problema da dependência química que se alastra pelas ruas. Para os miseráveis que circulam pelas cracolândias de São Paulo restam a violência e a truculência ou um modelo de atendimento majoritariamente cristão. O problema é que, muitas vezes, o resultado é bem diferente da cura pretendida. 

 *Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.