Mães de Joelho, ativistas em pé: o impacto social e político da oração de mães cristãs de pessoas LGBTI+
Desde a corrida eleitoral do ano passado, uma mulher tem se tornado um importante ícone na causa LGBTI+ por sua linguagem e por sua maneira de expressar seu apoio e suporte na luta contra a violência contra essa população. “Ninguém toca nas minhas LGBT, amém?” é atualmente um dos jargões mais utilizados pela comunidade LGBTI+, especialmente quando a pessoa tem ou teve qualquer tipo de vivência com esse tipo de linguagem. Entre risadas engraçadas e abraços emocionantes, Irmã Mônica[1] agora é oficialmente uma influenciadora digital e até fecha parcerias, recebe mimos de marcas, etc. Um trabalho inocente de oração pelo Brasil, pela política e pela comunidade a qual seu filho pertence mobilizou vários debates nos últimos meses.
Fato é que essa visibilidade trouxe para a cena evangélica uma importante narrativa que vai na contra-mão de tudo o que se fala sobre rejeição e aceitação dentro de lares cristãos. Há mães (e também pais e pessoas cuidadoras de uma forma geral) que encontram em sua fé evangélica um espaço de aceitação, afirmação e celebração das identidades LGBTI+. A separação e ruptura abrupta do vínculo familiar por falta de aceitação (e muitas vezes violência) de pais e mães em relação a suas crianças (das mais diversas idades) é uma realidade maior do que gostaríamos de viver e ter em nossas vivências, mas ao mesmo tempo é fundamental visibilizar que esse não é o único destino possível.
Ao que se acompanha nas redes, não parece que a Irmã Mônica se debruçou sobre os mais profundos textos de teologia queer, ou que ela se dedicou a aprender as traduções do original grego antigo dos versículos que a NVI errônea e perversamente chama de “homossexuais ativos e passivos” (I Coríntios 6: 9-11). Irmã Mônica tem uma chave teológica para a decisão de aceitar, afirmar e proteger a comunidade LGBTI+ que parte de um elo essencial que muitas vezes os movimentos de teologia queer e evnagélicos progressistas (dos quais faço a mea culpa) tem deixado de se aprofundar: a experiência de fé. A oração foi suficiente para Irmã Mônica ouvir em sua experiência com Deus que o Jesus que ela serve celebra as identidades diversas e que em nome desse Jesus ela pode “DAR UMA ORDEM E UM DECRETO: NINGUÉM TOCA!” nas minhas LGBT, nas minhas sapatão, nas minhas não-binário e assim vai. Algo transcendente foi mais poderoso que qualquer texto reflexivo sobre Deus, teologia, diversidade sexual e de gênero. Por vezes irmã Mônica aparece inclusive aprendendo sobre a sigla, os conceitos mas o carisma de uma mãe disposta a orar em favor da comunidade
Em Osasco, no morro do socó, a pastora pentecostal Irene foi, há mais de 20 anos, a primeira pastora a abrir uma igreja na comunidade onde se dizia que “pastor sobe o morro mas não desce”. Reconhecida não apenas como uma líder espiritual, mas também como uma líder comunitária, Pastora Irene Carvalho[2] em seus anos de ministério na favela de Osasco é responsável por cuidar e acolher mulheres em situação de violência doméstica, apoiar adolescentes que engravidam, além de seu fundamental trabalho de assistência social na arrecadação de mantimentos e distribuição de cestas-básicas. Entre suas ações pastorais de cuidado comunitário, Irene também dá aulas de batalha espiritual para a comunidade e dirige toda quarta-feira um culto de onde ora com sua comunidade por cura de doenças, desemprego, familiares em situação de vulnerabilidade, enfim, a melhor definição de “ministério de sucesso” para uma igreja pentecostal. Dentro desse contexto, Irene percorre com sua comunidade o desafio pastoral que talvez mais lhe tenha custado: aceitar seu filho gay. Enquanto cursava psicologia no interior do Rio de Janeiro, Guilherme Carvalho numa ligação disse para sua família sobre sua homossexualidade e sobre, segundo suas próprias palavras “não ser desviado, só viado mesmo…” Atualmente o morro do Socó é composto de outras igrejas que só tem oportunidade de estar lá por conta do pioneirismo dessa mulher que hoje enfrenta fofocas e mal-dizeres, mas em meio a tua isso, Pastora Irene segue com uma certeza que gera paz no coração dela sem qualquer rastro de dúvida: seu filho é um homem de Deus. Guilherme é o único da família a não seguir o ministério pastoral, uma vez que seu pai também é pastor junto com Irene e sua irmã mais nova, Lívia Carvalho[3], também seguiu o caminho da mãe e agora é não apenas pastora da Igreja Evangélica Pentecostal de Jesus Cristo de Osasco como mestranda em Ciências da Religião e Bispa de uma denominação centenária, a “Igreja Antiga das Américas (IADLA - Brasil)”[4]. Mesmo com a filha sendo uma excelente e reconhecida acadêmica de teologia, o que fez Irene e seu esposo, Reumacir, enquanto pastores pentecostais, passarem a aceitar e celebrar a identidade de seu filho gay foi o que Deus falou com eles em suas experiências de oração. Irene ouviu Deus falar pra ela que seu filho iria para o céu e não só isso, que Deus sonhou com o Guilherme do jeito que ele é: um homem gay. Hoje em dia Pastora Irene habita em uma certeza que vai além da aceitação, que é a convicção de que seu filho é usado por Deus para alcançar outras pessoas e promover o Reino de Deus!
Na Zona Leste de São Paulo outra experiência com uma pastora encontra lugar na afirmação de pessoas LGBTI+ a partir de uma experiência de fé. Vivian Faleiro Santos[5] casou-se com Daniel Santos e ao lado dele serviu como pastora nos últimos 20 anos, dos quais apenas recentemente, na Comunidade Cristã da Zona Leste, por eles fundada, pode ter a ordenação e reconhecimentos do sacerdócio que lhe possibilitou a reivindicação do título de Pastora. Vívian é mãe de Nicolas e Julia, dois jovens que integram a comunidade LGBTI+ e esse percurso de aceitação em seu caso passou pelo encontro com a própria comunidade de fé. Em um vídeo que tomou conta das redes sociais no mês do orgulho LGBTI+, inclusive publicado no instagram de celebridades como Rafael Portugal[6], Vivian se emociona durante um sermão onde está pregando para sua igreja e diz “se você não é mãe de pessoas LGBTI+ eu quero te pedir uma coisa: abrace nossos filhos e ensine seus filhos a amarem nossos filhos”. No sermão completo, disponível na página do youtube da igreja[7], a pastora compartilha um sermão sobre a sobrecarga de mães na sociedade e com muito orgulho e humildade afirma sobre sua experiência de ser mãe de duas pessoas LGBTI+. Previamente pertencentes a uma denominação que não aceitava pessoas LGBTI+, Daniel e Vivian foram convidados a conduzir sua comunidade inteira para fora da denominação por vários motivos, dos quais o mais gritante foi a decisão que a comunidade teve de receber afirmativamente pessoas LGBTI+ celebrando suas vidas e ministérios. Esse passo corajoso fez com que o terreno da aceitação de seus filhos fossem um lugar seguro para Vivian e Daniel e hoje, como Pastora orgulhosamente feminista, Vivian e Daniel tem orgulho de dizer a todas as pessoas que suas crianças são expressões do carinho de Deus e isso inclui as identidades LGBTI+ que tem. Antes de Júlia e Nicolas contarem aos pais sobre como se identificam no gênero e sexualidade, Vivian e Daniel já deram o exemplo em seu contexto de igreja quando assumem publicamente que pessoas LGBTI+ ocuparão cargos de liderança sem precisar renunciar qualquer parte de suas identidades. Julia e Nicolas viram no exemplo da igreja o quão bem-vindos seriam ao contarem para suas famílias sobre suas identidades e hoje sua mãe e seu pai são importantes aliados no debate sobre igrejas inclusivas e afirmativas para pessoas LGBTI+.
Em tempos onde muitas igrejas capitalizam em cima da luta de direitos LGBTI+ e algumas até usam esse tema de má fé por mero desejo de angariar dízimos e ofertas, Vivian e Irene são pastoras radicais na convicção de que aceitar e receber pessoas LGBTI+ em suas igrejas envolve o desafio de também educar teologicamente a igreja colocando o protagonismo desse tema com as pessoas LGBTI+ que tem vivência, conhecimento teórico e experiência pastoral para desenvolver o assunto. Sem serem oportunistas da causa, Vivian e Irene aceitam a dor e delícia de serem mães afirmativas e não deixar isso passar despercebido em suas pastorais.
O processo de aceitação da criança LGBTI+ nem sempre é transcendental e epifânico e em alguns casos um caminho de oração, reflexão e conversas corajosas ajudam as mães e pais a conhecerem essa dimensão do Deus que afirma e celebra as identidades plurais. Assim foi com Marilene Botelho[8], que mora em Curitiba e percorreu um caminho, nem tão agridoce. Aceitar seu filho como homem gay foi um caminho de sofrimento, noites de choro e muita contrição espiritual diante do Deus que ela sempre acreditou que condenava a identidade com a qual seu filho, de quem ela sempre desconfiou, confessou em 2016 ter. Escrever sobre essa última personagem deste texto é escrever com redobrado afeto e honra, uma vez que a pessoa LGBTI+ que contou para Marilene sobre sua identidade é o autor que escreve essas palavras. Brigar com Deus fez parte do processo que hoje faz com que minha mãe e meu pai sejam meus maiores apoiadores para ser quem eu sou e fazer o que eu faço. Muitas orações não respondidas do “por que?” e muitos silêncios engasgados pelo choro na madrugada. Em uma conversa com meu irmão mais velho, minha mãe indagou: “será que foi por que eu desejei uma menina” ao que meu irmão respondeu “então o seu Deus castiga? Quer dizer, porque você desejou uma mulher, ele te deu essa penitência que é ter um filho gay? Que Deus é esse?” e essa ideia de Deus começou a ser remodelada, reformulada. A reconstrução de sua experiência de fé a partir da afirmação de um Cristo que olha pra mim com orgulho passou, inicialmente, pela desconstrução de pela derrubada de alguns estandartes que o fundamentalismo religioso impregnou em sua maternidade. Conversas corajosas com outras mães não evangélicas também foi um importante ponto e sinal para ela encontrar refúgio. Silvia Kreuz, catequista da igreja católica e fundadora do grupo “Mami - mães de amor incondicional”[9] foi um importante refrigério, além de Thea Baltazar, melhor amiga de Marilene desde seus primeiros anos em Curitiba. De mulher extremamente engajada com a igreja, líder do ministério de casais, diaconisa, famosa “Tia Mari” dos acampamentos de adolescentes, e mais um monte de tarefas, a professora do curso de “casais para a eternidade” hoje, junto com seu marido, experimentam um movimento de viver uma espiritualidade eclesiástica sem tanto trabalho. Após a transição de denominação, Mari e Botelho (minha mãe e meu pai) hoje sabem que ser igreja vai além do ativismo religioso.
Parte do caminho de aceitação foi também ao perceber o ativismo e a realidade que pessoas LGBTI+ viviam com suas famílias. Como fundador do Evangélicxs Pela Diversidade, passei pelo processo de pastoreio de muitas pessoas que passavam sérias situações de violência em seus lares e enquanto me viu atuando no ministério, minha mãe viu que a vida que Jesus conquistou na cruz é para todas as pessoas. Certa vez uma outra mãe escreveu para ela “meu filho só está vivo hoje por causa do que o seu filho fez por ele” e entre uma mensagem aqui, um testemunho ali, minha mãe e meu pai hoje sabem que Jesus ama todas as pessoas. Talvez não tão enfática como a Irmã Mônica, dentro de sua experiência de fé evangelical minha mãe também ora para que “ninguém toque no meu filho gay”. Esse resultado de hoje ser a mãe que ama o genro que dei a ela, levou minha mãe para um lugar de hoje ser suporte para outras mães evangélicas. Embora não obtenha diploma de bacharelado e talvez não seja especialista em versar sobre teologia queer, o suporte que minha mãe e meu pai oferecem hoje vem do lugar de compreensão de que a fé não é meramente uma coisa cognitiva e reflexiva.
O geógrafo da Religião Sylvio Fausto Gil Filho diz em seu livro que “Com o desenvolvimento da teologia moderna, a ortodoxia reforça uma ideia racional da divindade e aponta para estudos da experiência religiosa enquanto representação humana. Quando a ortodoxia assume esse caráter, pouco a pouco, reduz a religião a seu aspecto racional” (2008) e às vezes mesmo as teologias progressistas (que em determinado momento usaram o rigor acadêmico para se defenderem e postularem suas possibilidades de ser e disputar seu lugar no âmbito da teologia e dos estudos de religião) recaem no equívoco de reduzirem suas possibilidades de compreensão do mundo a esse lugar.
Costumo dizer que o equilíbrio é bambo e ele acontece sempre na tensão e essas mães estão mostrando como é necessário puxar toda a reflexão teológica que se tem (e é importante que se tenha) para o centro com o afeto que do lado de lá tem sempre disponível através do abraço, oração e carinho. Enquanto essas mães permanecerem de joelhos orando e abençoando seus filhos. Nós, ativistas cristãos LGBTI+ permaneceremos de pé na linha de frente contra o fundamentalismo, proclamando a boa nova de Jesus Cristo que venceu a morte para que todas as pessoas tenham vida e vida em abundância!
NOTAS:
[1] Irmã Monica: https://www.instagram.com/irmamonicabispo
[2] Pastora Irene: https://instagram.com/pastora_irenevm
[3] Lívia Carvalho: https://instagram.com/liviamdecarvalho
[4] IADLA Brasil: https://instagram.com/iadla.brasil
[5] Pastora Vivian: https://instagram.com/faleirovivian
[6] Link do Rafael Portugal: https://www.instagram.com/reel/CuCgb2Nsc4Q/?igshid=MzRlODBiNWFlZA==
[7] Link do Vídeo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=XG6dBIii9HQ
[8] Marilene Botelho: https://www.instagram.com/marilene.botelhoo
[9] Página do MAMI: https://www.facebook.com/grupomami/
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Bob Luiz Botelho é membro Associado das Nações Unidas para assuntos de Religião (UN Religion Fellow) agenciado pelo CONIC e pela OutRight International. Estudante e pesquisador em Geografia da Religião pela UFPR, é teólogo de formação pentecostal e batista, tendo raíz e formação presbiteriana com uma passagem pelo adventismo. Fundador do Evangélicxs pela Diversidade, a primeira iniciativa evangélica e LGBTI+ da sociedade civil na América Latina, atuando na OEA e sendo o primeiro LGBT+ assumido a ser membro pleno da FTL (Fraternidade Teológica Latinoamericana). Reverendo pela IADLA-Brasil (Iglesia Antigua de Las Américas), é pastor na Comunidade MESA em Curitiba. Atuou por 7 anos em diversas organizações missionárias, onde estudou e deu aula de Missiologia e Missão Integral. Biblista formado pelo CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), é professor de Exegese, Hermenêutica e Teologia Queer. Instagram: @bob.luizbotelho Youtube: youtube.com/@bobluizbotelho Contato por https://taggo.one/bob.luizbotelho