Machado de Assis e a condição humana

Na obra “Dom Casmurro” Machado revela o que ele entendia sobre o ser humano. Ele mostra o dualismo da vida humana. A forma antagônica de viver e de se relacionar. Esta é a grande tensão da vida humana – abrir mão de algo que é essencialmente seu para que o outro lado mais puro seja desenvolvido.

Machado de Assis e a condição humana

Estudar as obras deste fantástico escritor é algo indescritível. Mas poucas pessoas conhecem o outro lado de Machado de Assis (1839 – 1908). O seu lado teológico ou quem sabe o seu lado observador do ser humano.

Na obra “Dom Casmurro” Machado revela o que ele entendia sobre o ser humano. Ele mostra o dualismo da vida humana. A forma antagônica de viver e de se relacionar. Esta é a grande tensão da vida humana – abrir mão de algo que é essencialmente seu para que o outro lado mais puro seja desenvolvido. O autor do livro revela um lado humano – o isolamento. O estado que a pessoa gosta de ficar quando passa por dificuldades ou quando deseja esconder algo.

Para quem conhece o livro sabe da imensa crise em julgar se houve ou não a traição de Capitu com Escobar. Um grande mistério. É neste mistério que se revela o ser humano apresentado por Machado de Assis.

Bentinho dizia que Capitu tinha olhos de ressaca. Capitu tinha os olhos verdes e bonitos. Mas este adjetivo de olhos de ressaca se dá pela profundidade e o desejo do olhar de Capitu. Para quem conhece a ressaca do mar sabe o que tento descrever. Na ressaca do mar as ondas são inesperadas. Elas vêm com um impacto muito forte e não se preocupam com as conseqüências. Quando ela volta para o mar leva tudo consigo. Bentinho descreve o olhar de Capitu desta forma. Era um olhar arrebatador.

Os amigos, Bentinho e Escobar, se conheceram no seminário. Dona Glória, mãe de Bentinho, desejava muito que seu filho fosse sacerdote. Mas não tinha isto como vocação. Os dois abandonam o seminário e continuam com a bela amizade. Bentinho um advogado promissor e Escobar um comerciante bem-sucedido. Bentinho casa-se com Capitu. Este era um amor de infância e muito esperado por Bentinho. Escobar casa-se com Sancha, grande amiga de Capitu. Os casais ficam muito próximos. Era uma amizade muito intensa. Quase que diariamente estavam na casa um do outro. Bentinho percebe que Capitu estava muito próxima de Escobar. Os dois gostavam de ficar sozinhos. Surgem então as dúvidas – será que está acontecendo alguma coisa entre os dois?

O casal, Bentinho e Capitu, deseja muito um filho, mas Escobar e Sancha têm a oportunidade de serem pais em primeiro lugar. O nome da filha é Capitolina em homenagem à grande amiga Capitu. Depois de certo tempo Capitu engravida e concebe um filho muito lindo de olhos azuis. Mas Bentinho não tinha olhos azuis. Quem tinha era Escobar. A criança tem todos os traços de Escobar. Bentinho fica paranóico principalmente quando a sua mãe deixa de freqüentar a sua casa. A mãe sempre percebe alguma coisa. A partir disto a história fica ainda mais envolvente. Machado começa a mostrar o monstro que há no ser humano. A imensa tentativa que o ser humano faz para dominar este lado sombrio. Bentinho tenta matar a criança com um veneno, mas muda de idéia e fica perplexo por ter cogitado tal possibilidade. Numa tentativa de fugir da realidade tão tenebrosa, ele manda Capitu e seu filho para a Europa. Machado mostra a dificuldade que o ser humano tem em lidar com crises que mexem com a esperança e a estrutura da vida. Bentinho se lança na vida promíscua e passa a sair com várias mulheres. Neste sentido é possível lembrar-se de Santo Agostinho (354 d.C. – 430 d.C.) que buscava no seio das mulheres aquilo que sua dimensão espiritual tanto almejava – o sentido da vida e a satisfação da alma.

A tentativa que Machado faz com excelência é mostrar o outro lado que habita no humano que tanto temos medo de conhecer. Ninguém gosta de revelar aquilo que é e aquilo que faz. A condição humana é se envolver num manto intransponível. Bonhoeffer (1906 – 1945) já dizia na sua obra sobre Ética que nem tudo pode ser dito e revelado. A vida pede o mistério. O escondido é a própria forma de Deus se manifestar – ele se revela e se torna mistério. Assim é a sua criação.

Machado tocará profundamente no âmago da condição humana. Dom Casmurro pode ser considerado o “livro do desassossego”. O desassossego essencial que perpassa todo o escrito, trazendo a cena a real desestrutura humana que em sua condição de pecado revela o seu lado noturno e sua situação de miserabilidade.

Na sua obra, ele tenta mostrar que a consciência tanto de homens e mulheres é uma consciência alienada da sua própria condição. É a continua simulação da existência, feita por gente que tem na agenda do seu dia a dia a fundamental preocupação de negar a sua própria fraqueza, e se escondendo atrás das maquiagens que o mundo vende. Assim aconteceu com Bentinho, ele mandou a família para a Europa, mas precisava fingir que visitava a família por causa da sociedade. Ele adquiriu um falso bem-estar. O contexto social não mudou. Naquela sociedade moderna e higienizada que coloca debaixo dos tapetes da existência a sujeira que é parte essencial dela mesma. Tanto naquele quanto neste contexto, as pessoas não sabem lidar com os invernos da mutação da sua condição de ser – é preciso anular algo para que a vida possa ser melhor.

Numa pequena percepção é possível entender que Machado de Assis é o abridor das sarjetas da alma que tem a coragem de colocar o dedo na ferida e assumir a verdadeira condição humana. Uma coragem machadiana de ser contraditório e não querer fugir das questões sombrias de sua própria existência.

Refletindo sobre a obra de Dostoiévski (1821 – 1881), o filósofo Leandro Konder (1936 – 2014) na sua obra sobre o amor diz que: “se nos detivermos na contemplação confortável das nossas qualidades não teremos nenhuma possibilidade de analisar nosso lado noturno e não aprenderemos a lidar humanamente com ele”. Esse lado noturno de nós que abre as nossas vidas para a sombra da contradição que sempre nos acompanha. Não assumi-la é assumir o mundo das máscaras e dos sorrisos falsos. Citando novamente Dostoiévski, autor que Machado gostava muito de ler, Dostoiévski disse o seguinte na sua obra “Memórias do Subterrâneo”: “o ser humano é tão complicado que nele há coisas que ele teme revelar até a si mesmo”.

Assim Machado genialmente descreve a real condição humana – o medo de lidar com aquilo que cria uma imensa tensão em nós. Por isso ele preserva tanto o mistério da vida – os segredos do coração do homem.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Christoper Marques é Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, foi professor da Casa do Saber São Paulo e membro do grupo Coalização Inter-Fé que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências. Autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja” (Editora Reflexão, 2015), “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” (Editora Fonte Editorial, 2017) e “Quando a Vontade de Viver Vai Embora” (Editora Paulus, 2019).