Lula não errou

Lula não errou

Ao comparar o massacre operado pelo governo de Benjamin Netanyahu em Gaza, com o Holocausto encetado pelos nazistas, o presidente Lula mexeu em um vespeiro. Mas ele estava errado na comparação? Na minha compreensão não, e passo a explicar o porquê.

Primeiro, porque Lula não chamou o povo judeu de promotor do genocídio palestino. Ele colocou luz sobre a barbárie a qual é submetida o povo palestino pelo atual governo israelense. Não são os judeus, é o atual governo de Israel. Importante frisar que ele não é o único, nem o primeiro a fazê-lo. O sionismo judeu levado às últimas consequencias pela extrema-direita israelense (leia-se LIKUD), não é unânime nem no próprio território de Israel. Há muita dissensão, oposição, inclusive de um segmento ortodoxo do judaísmo. Para tais grupos dissidentes e que possuem visível bom senso, a guerra promovida por Netanyahu é condenável e deveria acabar. Até mesmo porque não existe código legal que justifique, que traduza uma invasão territorial como autodefesa.

Em segundo lugar, Lula iluminou uma terra sem luz. Privados de serviços essenciais, sem comida, água, sem habitação, devido à forçada imigração e ajuntamento no Sul de Gaza, sem atendimento médico, sem equipamentos, sem insumos e instrumentos básicos da Medicina, os palestinos guindaram, segundo a ONU, o posto de lugar mais inóspito da Terra, deixando para trás concorrentes de peso que sempre se esforçaram para tornar seus territórios um lugar pior para se viver. Ora, não é admissível que o mundo assista no sofá a morte de milhares de crianças e de mais um número não calculado de infantes e de adultos soterrados debaixo dos entulhos, a que foram reduzidos bairros inteiros pelos reiterados bombardeios israelenses. Foi sobre esta situação insuportável que o presidente Lula jogou luz, ao rasgar o fino véu do que seria o melhor trato diplomático.

Esse movimento de Lula desnudou os movimentos de adesão, os partidários de Israel. Isto porque solidariedade seletiva, que tem lado, não é solidariedade; é compadrio. Amor que se mostra em favor dos meus não é altruísmo; é egoísmo. Desta feita, Lula desnudou a motivação de muitos. Não o amor agape, mas o eros é que tem pautado as afeições e desconsiderado os inocentes nesta guerra. Não por outro motivo que Freud nos lembra da adesão das massas pela libido. Se com a pressão externa e interna, Israel segue oprimindo os palestinos como Faraó uma vez oprimiu os hebreus, imagina o que seria sem essa parcial e limitada iluminação externa?

Tampouco Lula teria errado no uso do termo Holocausto. Ora, a História insiste em aplicar esse termo a diferentes barbáries perpetradas por povos sobre outras etnias ao longo da experiência humana nesta terra. O genocidio dos albaneses pelos Otomanos, dos mouros ibéricos por Aragão e Castela, o efetuado por Gengis Khan, Holodomor na Ucrânia, os povos originários nas Américas, o Holocausto Congolês impingido por Leopoldo II da Bélgica; a própria tomada de Canaã segundo o indigesto relato bíblico, a escravidão de negros africanos, ou ainda o resultante dos diferentes conflitos entre etnias na África, são alguns dos exemplos históricos. O fato do Holocausto judaico na Segunda Grande Guerra ter ganho certa primazia sobre os demais, diz muito (sem negar as atrocidades cometidas, fruto da banalização do mal, como nos lembra Hannah Arendt) sobre a influência deste povo no mundo ocidental. Não foi o maior massacre, embora tenha sido horrendo.

Por que então do melindre da comparação? Penso que em parte esteja na consciência judaica de se perceber como povo eleito. Sob esse prisma, tanto as vitórias quanto as tragédias passam a ser interpretadas a partir desta autocompreensão como povo. O resultado é que embora não tenha sido o maior genocídio, e talvez, nem o pior de todos (a História mostra que homens desalmados em função de poder conseguem se superar na perversa prática da maldade), por ter sido contra o povo eleito adquire o status de algo único.

Outro fator é a conscientização. O que dói é ser chamado pelo monstro que mais se abomina e que, por esta razão, mais se combate. Não gosta de ser comparado ao que mais condena? Não quer ser visto como uma reencarnação de Hitler? Basta não agir como tal. Lembro que certa vez o profeta Eliseu, que iria ser morto por um batalhão do exército sírio, após orar, conduziu todo aquele pelotão, agora tomado por uma cegueira, pela mão até o rei de Israel. Ao chegar no palácio real a narrativa bíblica registra a pergunta do rei: devemos matá-los? A sabedoria profética, que esteve disponível durante muito tempo na história de Israel, recomendou: alimente-os e os despeça em paz. Curiosamente, após esse fato houve um tempo sem conflitos entre Síria e Israel. A lição é clara: a paz não percorre as mesmas trilhas da vingança.

Quando a fala do presidente Lula começou a ecoar no Brasil, a única e maior dificuldade que antevi foi a da oxigenação da extrema-direita. Aquela turma, pensei, das viúvas do Derrotado em 2022, ganhou combustível extra. Entretanto, logo depois fui lembrado pela deputada Sâmia Bonfim (PSOL/SP) de que teve deputado do MBL que discordou da criminalização do nazismo feito pela Alemanha; de deputada da CCJ que se encontrou com deputada pertencente ao que seria o partido neonazista alemão; de deputada com singular predileção para caçar preto, fazendo uso da estética nazista ao associar palestinos a ratos; e por fim, nessa lista selecionada de exemplos, de deputado que da tribuna da Câmara enalteceu seu falecido avô que engrossou as fileiras nazistas na Segunda Grande Guerra. O próprio Derrotado recebeu, no gabinete presidencial, no Planalto, uma deputada da extrema direita alemã, leia-se com ideais nazistas; e mais: enquanto deputado, do seu gabinete teria partido uma carta de saudação para uma célula nazista em funcionamento no Sul do país. Seriam esses os legítimos defensores dos judeus? Logo vi que a grita era pura bravata.

Quanto aos evangélicos que se acham judeus...rsrs! Possivelmente não seria permitido que eles adentrassem ao pátio dos gentios, caso o Templo de Jerusalém fosse reerguido. Esse amor desmedido ao Estado Moderno de Israel só evidencia: o caráter judaizante da igreja evangélica brasileira; a ausência de profundidade bíblica; e a confusão entre o conceito de povo de Deus, de Israel de Deus com o país que leva este nome hoje.

Em termos externos Lula não errou. Ao contrário da recepção por parte da mídia brasileira, há um crescente endosso, pela comunidade internacional, à fala do Presidente Lula. Propositalmente ou não, Lula riscou o chão e isolou ainda mais o governo de Netanyahu, restando a ele e seus pares o beiço e as grosserias diplomáticas pelo Twitter (X), como as patrocinadas pelo seu Chanceler, que afirmou que Lula teria "cuspido na cara dos judeus" de todo mundo. Tal afirmação, equivocada no seu mérito e na sua aplicação, trouxe muito desconforto nos corredores diplomáticos. No entanto, acho que a infeliz expressão do Chanceler israelense poderia redundar em um final feliz. Aliás, se fosse do Itamaraty, responderia aquele tuíte com a seguinte expressão: "há certas cegueiras que só são curadas com cuspe", conforme mostra o relato bíblico de João 9:6.

Por fim, aprendemos que problemas para serem resolvidos precisam de uma boa diagnose. Diagnóstico envolve nominação: dar o nome certo às coisas. Tratar um genocídio em curso (lembro a você que membros do governo israelense já flertaram com o uso da bomba nuclear nesta guerra), como baixas de guerra, é perpetuar o holocausto palestino. Lula fez bem em dar nome ao problema.

Meu desejo é que as escamas do ódio étnico caiam e que Israel interrompa o massacre palestino, sentando a mesa para conversas de paz. Ninguém aguenta mais ver e saber que pequeninos têm sido mortos dia sim e outro também na faixa de Gaza. Que a paz encontre o território palestínico e que também alcance outros rincões do mundo.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. Contato: sdusilek@gmail.com