Louvorzão no supermercado

Louvorzão no supermercado

Coluna - Sugestão de pautas (M. César)

Louvorzão no super

Um vídeo que mostra dezenas de pessoas cantando um conhecido hino cristão num supermercado no Rio de Janeiro viralizou nas redes nesta semana. Quem vê acredita que o grande coral se formou espontaneamente, à medida que mais consumidores iam aderindo em alta voz ao “Porque Ele vive“. O hino, um dos mais conhecidos da Harpa Cristã, se chama originalmente Because He lives, e foi composto pelo americano William J. Gaither, na década de 70.

Se fosse um evento espontâneo, realmente seria impressionante demonstração de ousadia. Comentários no Insta variaram dos aplausos aos mais explícitos haters. “Eu odeio crente mesmooo. Os cara vai na porta da sua casa pregar palavra, vai em carnaval de rua, é no trem, no mercado, shopping, invade terreiro, é na praça, em tudo. Crente é insuportável e acha que todo mundo é obrigado a ter a mesma crença que eles, n tem raça PIOR” “É lindo o louvor, mas será que se fosse uma canção umbandista, espírita ou de qualquer outra que não fosse cristã, teria a mesma recepção? Reflexão…” “Poderia tranquilamente ser uma cena de The Handmaid’s Tale isso.”

A revista Carta Capital descobriu, contudo, que, na verdade, se tratou de uma ação de evangelismo planejada pela Igreja Fonte da Vida, com sede em Goiânia, liderada pelo autodenominado apóstolo César Augusto. A igreja, segundo a matéria, tem 181 unidades espalhadas pelo Brasil, 11 na América do Norte, 2 na Europa e 1 na Namíbia.  “O IDE é um projeto evangelístico, com o objetivo de alcançar pessoas que ainda não conhecem e que precisam de Cristo em suas vidas e famílias”, define o apóstolo César Augusto, famoso no círculo evangélico por ser um forte aliado de Jair Bolsonaro”, diz o texto.

Para pensar:

Qual seria a sua reação se estivesse fazendo compras no super e, de repente, uma multidão, um flashmob evangélico, começasse a cantar bem alto um hino evangélico?

Você acredita que as religiões têm direito a esse tipo de expressão pública de fé?


Coldplay é de Deus ou do diabo?

A pastora Sarah Sheeva despertou o furor dos fãs da banda inglesa Coldplay num post didático, em que explica as estratégias de ação do Coisa Ruim envolvendo a música. Como se sabe, antes de chegar para aterrorizar os humanos, Satanás era o chief executive officer do departamento de Louvor no céu. Seu nome então era Lúcifer, e ele era tão bom no que fazia que resolveu afrontar o Criador, sendo dispensado das funções e expulso do lugar com todos os seus fiéis colaboradores.

Na postagem, a pastora retruca alguns crentes que foram ao show, em São Paulo, e postaram fotos extasiados com as músicas de Chris Martin. Para quem argumentou que as letras da banda parecem, em muitos casos, bastante cristãs, ela esclareceu: "Se engana quem acha que o diabo seja tão burro de se revelar na letra de uma música dele. Nunca é a letra que ministra. O que ministra é a melodia. A letra entra 'só' na tua mente (alma, entendimento), porém, a melodia entra no teu espírito humano, e ministra e libera algo dentro de você, que você não discerne com a mente/alma."

Sarah Sheeva reproduz em sua fala uma visão teológica conhecida como tricotomista, que divide o ser humano em três vertentes: corpo, alma e espírito, deixando tudo que se refere à esfera espiritual exclusivamente à “absorção” do espírito humano. Essa visão difere da dicotomista, que predomina, por exemplo, no judaísmo: cada alma humana é a soma de corpo + espírito.

Mas voltando ao Coldplay. Não satisfeita em criticar cristãos que foram ao show, ela ainda classificou o grupo como sendo “do diabo”. "Não se engane, no céu não toca "Capetaplay", os anjos de Deus não cantam "Coldinferno", eles não gostam, mas você, sim, você gosta, e não abre mão disso... No grande dia você não poderá dizer que Deus não usou alguém pra te alertar, pois eu estou aqui fazendo esse trabalho por ordem dele."

A pastora, provavelmente, desconhece o histórico de Chris Martin, o “anjo” vocalista do Coldplay, que com seu sorriso iluminado atraiu centenas de milhares de brasileiros para o estádio do Morumbi em 11 shows completamente esgotados no mês de março. Nascido em Devon, interior da Inglaterra, Martin foi criado na igreja evangélica, numa família cristã rigorosa, e até a juventude era considerado um “zelote” pelos amigos. Numa entrevista ao jornal The Times, em 2019, ele afirmou: “Acho que Deus é amor. (...) E Deus é a mágica em cada molécula, mesmo nas pessoas de quem você não gosta.”

Mesmo tendo se afastado da igreja, ele escreve muitas canções que fazem alusão à fé. Numa entrevista à revista Rolling Stone, Martin explicou que 'A Message' foi tirada do hino 'My Song Is Love Unknown', enquanto 'Til Kingdom Come' foi inspirada na oração do Pai Nosso. Ele disse à revista: “Uma das vantagens de sermos forçados a ir aos cultos da igreja é que nós cantávamos todas essas grandes canções. É em parte por isso que estou obcecado em fazer com que todos cantem junto em nossos shows. Isso me faz sentir como se eu fosse parte de algo.”

Para pensar:

Você também faz parte do time de cristãos que limita toda manifestação do Sagrado aos muros da sua igreja?

Você acredita que ir ao show do Coldplay ou de qualquer outro artista que aqueça seu coração com sentimentos de alegria e amor pode ser uma experiência sagrada?


E já que estamos falando do Coldplay...

As músicas hipnotizantes compostas pelo Hillsong United, o time de louvor da igreja Hillsong, fundada em Sidney, Austrália, em 1983, já foram comparadas ao som do Coldplay. Canções como “Oceans”, “All for love” e “All I need is you” podem ser cantadas em português, espanhol e sabe-se lá quantos outros idiomas. A igreja tem “filiais” em nada menos que 30 países, em seis continentes. É frequentada por celebridades como Selena Gomez, Justin Bieber, Nick Jonas e Chris Pratt. Somente na Austrália, em 2021, a frequência semanal a seus cultos em variados Estados foi de quase 20 mil pessoas, segundo o relatório anual disponível no site da igreja.

"A música da Hillsong de hoje se parece com o Coldplay. O objetivo da Hillsong é se manter atualizada, fazer músicas que sabem que as pessoas vão gostar em vez de reformar os antigos hinos das avós. Eles querem que você sinta a presença de Deus, mas é fácil confundir manipulação emocional com o mover de Deus. Você está chorando por que o Senhor está fazendo algum tipo de intervenção na sua vida ou por que a estrutura de acordes é feita para você chorar?", questiona a jornalista Kelsey McKinney.

McKinney é uma das vozes críticas ouvidas no documentário “Hillsong: O Escândalo por Trás da Megaigreja”, que desde o início deste ano está disponível na HBO Max. As revelações causam tristeza, raiva, decepção. E colocam em xeque um modelo de igreja que, no Brasil, ainda é almejado por muitas lideranças evangélicas. Muitos pastores por aqui seguem as mesmas estratégias de crescimento, sonhando construir megaigrejas espelhadas na Hillsong. Conhecendo o poder da música como ferramenta de manipulação emocional, apostam em times de louvor cada vez mais sofisticados e antenados com as “necessidades” musicais do público mais jovens.

Em resumo, a história da ascensão e queda dos pastores líderes da Hillsong tem muitos fatores comuns à queda de igrejas no mundo todo, incluindo o Brasil. Uma teologia que empodera o pastor enquanto “ungido de Deus” e voz de autoridade inquestionável na igreja; a ênfase em canções emotivas e que repetem refrões ad eternum, como se fossem mantras evangélicos, levando muitos a experimentar êxtases espirituais; o crescimento que vem como resultado, o dinheiro que entra a rodo e acaba por corromper as lideranças. É um roteiro que conheço na prática, o qual descrevo no livro Feridos em nome de Deus, lançado em 2009.

As revelações do documentário acabaram por abalar a estrutura da igreja e, em março de 2022, o pastor líder da Hillsong, Brian Houston, renunciou ao cargo de pastor sênior global. “Reconhecemos que a mudança é necessária. Assumimos o compromisso de uma revisão independente de nossa estrutura e processos de governança, entendendo que este é um momento de humilde reflexão e estamos comprometidos em fazer o que for necessário para garantir que Deus seja honrado e que nossos olhos estejam fixos em Jesus” dizia uma nota da igreja.

No Brasil, a Hillsong tem duas unidades em São Paulo, na Vila Olímpia, Zona Sul, e no Tatuapé, Zona Leste. Os pastores líderes são o casal Chris e Lucy Mendez.

Para pensar:

As megaigrejas crescem também no Brasil. Quantas já são? Que estrutura de governança elas possuem? Têm estatutos bem estabelecidos, prestam contas a alguma instituição ou conselho ético, prestam contas de suas finanças regularmente aos seus membros?


A Batalha por almas no Nepal

O Evangelho se espalha pelo Nepal, país onde a maioria da população é hindu, por influência da vizinha Índia, ou budista, por influência da China. É o que nos mostra um documentário da BBC News, que pode ser visto pelo canal da emissora no Youtube. “A Batalha por almas no Nepal”.

O número de evangélicos, embora desconhecido, cresce rapidamente. Igrejinhas brotam nas comunidades, de onde se ouvem músicas cristãs e aleluias como se fossem as pequenas Assembleias de Deus espalhadas pelo Brasil. O fenômeno é resultado principalmente do trabalho de missionários sul-coreanos, que estão disseminando os ensinamentos de Jesus, “plantando” igrejas e atraindo milhares de fiéis. “A identidade cultural do país está em jogo, o tecido da unidade nacional está em jogo, a harmonia social está em jogo”, afirma um furioso ex-vice premiê Kamal Thapa no filme. “Eles estão interferindo em nossa religião hinduísta de várias formas”, esbraveja um nepalês anônimo.

O aumento dos nepaleses evangélicos provoca mudanças sociais, pode confrontar o sistema de castas vigente - pelo qual existem seres humanos de segunda classe -, e incomoda a ponto de o governo ter passado uma lei que pune com até cinco anos de cadeia quem “converter” um cidadão para outra religião. O “Código Criminal 2074”, como foi intitulado, informa que “ninguém deve converter uma pessoa de uma religião para outra religião ou professar sua própria religião e crença com intenção semelhante, usando ou não qualquer meio de atração e perturbando a religião ou crença de qualquer grupo étnico ou comunidade que seja praticada desde a antiguidade”. Além da pena de cinco anos de prisão, o criminoso paga multa no valor de cinquenta mil rúpias (algo em torno de 1,5 mil reais). A lei vale para estrangeiros.

“O avanço do Evangelho pode colidir com religiões e culturas pré-existentes. O choque cultural é inevitável”, afirma um missionário sul-coreano no vídeo da BBC. Segundo ele, há mais de 23 mil missionários sul-coreanos espalhados pelo mundo. No Nepal, a chegada deles se deu com o fim da guerra civil, em 2008, quando o país foi declarado secular, abrindo as portas para a chegada de pregadores de várias nações.

Entre elas, o Brasil. Há muitos missionários brasileiros evangelizando no Nepal. Uma das organizações é a Missão Desafio, ligada à Igreja Brasil para Cristo. A Igreja Universal do Reino de Deus também está representada em Katmandu. Uma das mais ativas é a Igreja Batista da Lagoinha, que tem 4 unidades no país e uma quinta em fase de construção.

Segundo informações no site da Lagoinha, a igreja cristã é perseguida no Nepal, e o país é um dos maiores desafios missionários da atualidade. Com cerca de 30 milhões de habitantes, 80% da população segue o hinduísmo. Contudo, segundo o pastor Lázaro Soares, responsável pela Lagoinha Nepal, o trabalho tem crescido e a igreja celebra casamentos, batismos, faz trabalho social e oferece escola bíblica e aulas de músicas.

Para pensar:

Será que os novos convertidos do Nepal serão capazes de influenciar a sociedade nepalesa, promovendo solidariedade, confrontado as castas e as filosofias que defendem que pessoas que sofrem muito estão pagando por pecados cometidos em outras encarnações?

Quais as principais carências enfrentadas pelos missionários brasileiros no Nepal?

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Marília César é jornalista e escritora.