Liberdade religiosa – um direito humano ou um argumento para a cultura do ódio?

Se queremos frear a violência e a dissolução do tecido social, é necessário responsabilizar lideranças religiosas que se valem do seu poder, prestígio e privilégio para propagar ódio. A liberdade religiosa é um direito humano que nos aproxima em igualdade, não é e jamais será argumento para o ódio.

Liberdade religiosa – um direito humano ou um argumento para a cultura do ódio?
Crédito: Cristiane Sampaio/Brasil de Fato

A liberdade religiosa é  um direito humano de primeira geração. É um direito que historicamente está vinculado com as disputas europeias por território. Sabemos que junto com as bandeiras das potências colonialistas vinham as armas empunhadas e a cruz. No caso europeu, a cruz poderia ser protestante ou católica. O pertencimento a esta ou aquela vertente do cristianismo era declarado por decreto. Não era uma escolha possível. Caso o sujeito não desejasse pertencer à vertente cristã vencedora da disputa, lhe restava deixar sua casa e buscar um lugar que o acolhesse em sua fé.

Depois de muito sangue de camponeses e camponesas derramado, muitas mulheres queimadas, muito território conquistado e estupidez praticada em nome de uma pretensa fé verdadeira, chegou-se à conclusão de que as pessoas deveriam ter o direito de praticar livremente a sua fé, sem o risco de serem perseguidas ou mortas. Mais tarde, as pessoas passaram a ter liberdade de escolherem se gostariam ou não ter pertença religiosa.

A separação entre religião e Estado foi, em alguns países, fundamental para que a liberdade religiosa se tornasse um direito garantido. Diferentemente do que alguns pensam, a separação entre religião e Estado não significa que o Estado proibirá a prática religiosa. Esta separação é importante para garantir que todas as pessoas tenham a liberdade de praticar a religião com a qual se identificam ou mesmo de não ter religião. Além disso, a laicidade possibilita que nenhuma religião tenha privilégios na sua relação com o Estado, mesmo quando esta religião seja professada pela maioria da população do país. A laicidade também garante que o Estado não interfira nas práticas religiosas, ao mesmo tempo em que garante o caminho inverso, ou seja, que determinada religião não imponha ao Estado os seus valores religiosos. O Estado democrático de direito pressupõe que todas as pessoas sejam iguais perante a Lei. O que rege um Estado é a Constituição. O que orienta  os fiéis, em seus templos, é seu livro sagrado ou, no caso, das tradições ancestrais, as suas oralidades. Como cidadãos e cidadãs, todos as pessoas, religiosas ou não, são regidas pela Constituição federal.

A descrição acima parece um tanto quanto óbvia. Só que não é. Nas últimas semanas, temos acompanhado o debate em torno do PL 2630/20, conhecido como PL das Fake News.  Tem sido muito interessante observar como grupos cristãos influentes, politica e economicamente, têm se mobilizado para fazer lobbys contrários ao PL 2630/20 se valendo justamente de fake news! Sendo que a maior das mentiras em relação a este PL foi a de que ele poderia banir versículos bíblicos das redes sociais. O mais estarrecedor é que o propagador da mentira é um ex-procurador, eleito deputado federal, agora cassado. Todas as funções exercidas por este senhor exigem compromisso com a Constituição Federal e com a verdade.

Após muito lobby, ocorrem mudanças na redação do texto em relação ao tema da liberdade religiosa. Entretanto, mais do que analisar a validade ou não das alterações realizadas, vale fazer a pergunta do porquê estes políticos cristãos influentes estão tão preocupados com a liberdade religiosa no âmbito do PL 2630/20. Não é preciso fazer grande esforço para entender que os arautos da liberdade religiosa no Congresso não estão preocupados com um direito humano que garante às pessoas de qualquer culto orarem e louvarem o seu Sagrado do jeito que quiserem. Tampouco é preocupação dos propagadores da liberdade religiosa no Congresso que Yalorixás e Babalorixás não sejam perseguidos nas ruas e seus terreiros queimados. Não é preocupação dos defensores da liberdade religiosa que mulheres tenham seus direitos sexuais e reprodutivos garantidos e que pessoas do mesmo sexo possam reconhecer suas uniões estáveis e ter suas famílias respeitadas, sem serem importunados com pregações sobre curas gays, por exemplo.

Estes cristãos evangélicos elitizados reivindicam não o direito à liberdade religiosa, mas um direito que, por lei, não existe, que é o de propagar o ódio contra grupos étnicos e religiosos, contra mulheres e pessoas LGBTQUIAP+, entre outros.

Entre os dias 2 e 12 de maio esteve no Brasil a sub-secretária geral da ONU e assessora para Prevenção do Genocídio, Alice Waimiru Nderitu. Durante sua permanência no Brasil, a Sra. Alice conheceu inúmeros relatos das violências históricas sofridas pelas populações indígenas, em especial, dos povos Yanomani e Guarani Kaiowá. Ela também ouviu histórias de familiares, de vítimas de chacinas policiais.  A maioria dos familiares são negros, portanto, podemos afirmar com segurança que a senhora Alice ouviu relatos sobre a perversidade do racismo institucional brasileiro. Tanto na violência contra a população indígena, quanto contra a população negra notou-se que toda a violência é precedida por discurso de ódio. Parte destes discursos são proferidos por pessoas pertencentes a algum segmento do cristianismo. Discursos religiosos que associam práticas religiosas não-cristãs com o demônio, ou, então, que associam a autonomia das mulheres com pecado e depravação, masculinidade com força e autoritarismo.

Se queremos frear a violência e a dissolução do tecido social, é necessário responsabilizar lideranças religiosas que se valem do seu poder, prestígio e privilégio para propagar ódio. A liberdade religiosa é um direito humano que nos aproxima em igualdade. A liberdade religiosa não é e jamais será argumento para o ódio. Bom seria se o debate sobre a liberdade religiosa no PL 2630/20 se tornasse mais público e abrangente. Perseguir e violar direitos e liberdades de grupos sociais vulnerabilizados jamais será um direito. Esta perseguição representa sim a distorção perversa da liberdade e do direito conquistados a duras penas no processo civilizatório.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.