Teologia que restringe conceito de salvação é usada com fins de controle
Não é de hoje que venho observando a fragilização de uma das doutrinas centrais para a fé cristã. Falo da soteriologia, ou doutrina da salvação. Exemplifico com uma experiência. Alguns anos atrás ouvi um pregador de uma igreja de médio porte do Rio de Janeiro anunciar, no final da mensagem, que um palavrão dirigido a um “ousado” motorista que distribui fechadas a esmo no trânsito poderia custar a salvação da boca eventualmente “suja”. Sim, ao invés de chama-lo de “filisteu”, no calor dos acontecimentos saiu uma outra palavrinha em homenagem à santa mãe do “barbeiro” ... Danação eterna por conta de uma palavra indesejavelmente, compulsivamente proferida. Que salvação mais frágil!
Mas não é só no discurso que essa fragilização, se manifesta. Ela se dá também como componente denominacional. Para certas denominações cristãs, somente serão salvos os que fazem parte dela. Este aprisionamento da obra salvífica de Jesus pouco tem a ver com a mensagem da cruz, com Seu ensino, e muito mais com um grave desvio no caminho que torna esta agremiação cristã em seita. Seguir Jesus já deveria apontar para a total incapacidade e inutilidade de qualquer tentativa de aprisionamento da mensagem do Evangelho. O Evangelho não é para alguns, mas para todos; não é de alguns, mas de Deus, e uma vez sendo dele, é de todos, para que quem quiser possa alcança-lo, recebê-lo.
Reflexo desta apropriação denominacional está na igreja. Para muitos o congregar debaixo da mesma placa de identificação eclesiástica se constitui no imprimatur da salvação. Para tais, o rol de membros de uma igreja é igual ao rol dos inscritos no Livro da vida, citado em Apocalipse. Repetem estes, acriticamente para o bem da verdade, que o desligamento na terra implica em desligamento no céu. Ora, isso é no mínimo atrelar Deus aos mais diversos e absurdos processos inquisitoriais da história. É macular o bom Deus com o que há de pior na religiosidade humana.
Esquecem estes que fragilizam a salvação que o citado texto de Mateus 18 só faz sentido em termos de missão. A Igreja, como Corpo de Cristo, liga quando resolve tocar nos intocáveis do seu tempo, pessoas alvo da discriminação e do preconceito (MT.8:1-4). Ela automaticamente desliga quando se recusa a ser o toque de Jesus sobre o sofrimento humano. Quando ao invés de acolher, apedreja, como deveria ser a atitude esperada de um rabino ao se deparar com um leproso. Deixar de congregar pode ser ruim, em alguns casos, e bom, em outros, tendo em vista a proliferação de comunidades de fé produtora de patologias. Nesses casos o abandono da congregação se torna atestado de sanidade mental e espiritual. Todavia, a salvação não fica presa na porta igreja. A salvação acompanha o salvo, não ficando restrita ao umbral do local de reuniões da comunidade de fé. É possível, e como vimos por vezes desejável, ser salvo sem congregar.
Por fim há os que atrelam a salvação à moralidade. Como no exemplo citado mais acima, concedem ao pecado, que no fundo é uma obra humana, um poder, um status, maior do que a Maravilhosa Graça de Jesus. Nesses casos o resultado é uma fé neurastênica, bipolar, quando não esquizoide. Para você que amplifica o pecado e silencia a Graça, lembro as palavras de Fiódor Dostoievski: "Não há pecado que esgote o amor de Deus".
Assim, podemos chegar em velórios de gente extremamente religiosa, fiel à sua denominação e congregação, porém com uma longa contribuição em termos de dores e sofrimento aos outros. E também podemos presenciar em outros velórios, gente de Deus que marcou profundamente os presentes através de uma vida cheia da Graça e bem distante da desgraça que a institucionalização de uma tradição (como a cristã) traz para a própria fé que ela (instituição) diz defender.
Por que falamos disso aqui?
Porque, em outras palavras, a fragilização da melhor concepção cristã soteriológica, serve como instrumento de controle, de domínio da consciência alheia. Serve para a manutenção de interesses políticos, especialmente como moeda de troca, de ameaça, por ocasião do exercício do chamado "voto de cajado". A excomunhão, para mentalidades dopadas pela excessiva religiosidade, representa um verdadeiro inferno em vida. Tais líderes sabem e exploram essa fragilidade. Por esta razão é que a fragilização da doutrina da salvação serve não só para corromper memórias e emplacar candidatos, mas também para degradar aqueles que estão ausentes. Serve para uma proposta de vida anticristã, e como tal, adepta ao anticristo da vez.
O mais incrível é que boa parte dos que sustentam essa fragilidade está entre aqueles que professam uma fé predestinista, o que é um verdadeiro paradoxo. A não ser que os interesses fundamentalistas atrelados ao hipercalvinismo se sobreponham à própria contribuição de Calvino. É aqui que a soteriologia sai do campo da fé para o campo da política, abrindo caminho para a messianização de políticos. Talvez seja também neste ponto que vejamos com nitidez a aliança e o estrago que o fundamentalismo faz no sistema de crenças cristão.
O resultado dessa incorporação de novos messias, da sebastianização da expectativa da população, do espaço público, é que a igreja vai se tornando casa vez mais afeita a este novo referencial, o que sempre traz o aumento do caráter excludente de sua postura, com consequente diminuição da verdadeira amplitude da mensagem da Graça, da salvação, que diz carregar consigo. A igreja, os evangélicos, passam a tomar a forma do referencial da vez, e não de Jesus. É um outro evangelho. Talvez seja por isso que parte dos evangélicos do Brasil, especialmente os adeptos da violência, sejam tão destoantes do Evangelho do Nazareno.
Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Contato: sdusilek@gmail.com
Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.