Grupo católico trabalhou para impedir aborto da menina de Goiás

Grupo católico trabalhou para impedir aborto da menina de Goiás

Uma menina de 13 anos passou por uma situação inimaginável em Goiás. Grávida de um homem de 24 anos, tentava há meses fazer o aborto legal a que tem direito. O pai dela, que deveria protegê-la, inicialmente não concordou com o procedimento. Conseguiu o apoio de advogados católicos, de um padre e uma freira e assim teve seu desejo de impedir o aborto aceito pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Dizia que a filha tinha um “relacionamento amoroso” com o homem que a engravidou e que já havia negociado com ele para que assumisse o bebê. A igreja e o judiciário, que deveriam ser espaços de acolhida e garantia de direitos, decidiram penalizar ainda mais a garota.

O caso é uma sucessão de aberrações. A menina também é fruto de um estupro. Sua mãe tinha 12 anos quando ficou grávida. Por isso, o pai não via problemas em sua filha manter uma gravidez indesejada e se casar com seu estuprador. Uma das juízas que deu parecer favorável ao impedimento do aborto disse não havia indícios de risco na continuidade da gestação. 

Lembremos que o aborto é permitido no Brasil em três situações: gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia do feto. Segundo o artigo 217 do Código Penal brasileiro, "aquele que tiver qualquer tipo de relacionamento amoroso com alguém que não tenha completado 14 anos, está sujeito a ser responsabilizado pelo crime de estupro".Além disso, as estatísticas mostram que casos de gravidez na infância e adolescência trazem complicações que podem levar a mãe à morte. Tudo isso foi ignorado pelas decisões iniciais da justiça e pelo pai da menina. 

O Ministério Público foi acionado e, com isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverteu a decisão do TJ de Goiás e autorizou o procedimento. A decisão da juíza Maria Thereza de Assis Moura apontou para a "extrema vulnerabilidade por parte da adolescente vitimizada não apenas pela violência sexual perpetrada pelo seu agressor, mas também pela violência psicológica exercida pelo pai e por seus representantes e pela violência institucionaldecorrente da demora na realização de procedimento de interrupção de gestação". O homem que a engravidou foi indiciado por estupro de vulnerável.

Depois da decisão do STJ, o pai disse que aceitou a vontade da filha. E denunciou à polícia que, com a mudança de opinião, passou a ser perseguido pelo grupo que antes o apoiava. Registrou um boletim de ocorrência afirmando que a filha foi constrangida por uma freira e que a menina foi perseguida até o hospital onde esteve para realizar exames. 

A diocese de Goiás se isentou da atuação do grupo, mas sabemos a posição a igreja em relação ao aborto. A CNBB, inclusive, emitiu nota de apoio ao PL 1904 que ficou conhecido como PL do estuprador por impor uma pena de 20 anos de detenção à mulher que realizar o aborto após a 22ª semana de gestação. O crime de estupro prevê uma pena de 8 a 15 anos de reclusão, por isso o apelido.

Somente no final na sexta-feira, dia 02, veio a notícia de que o aborto finalmente realizado. Tantos obstáculos levaram a gravidez a um tempo que dificultou o procedimento e só aumentou o risco de complicações para a menina. Com o discurso de defesa da vida, o grupo católico envolvido no caso deixou claro não se importa com a vida da criança estuprada e grávida. Nessa cruzada, criou um tribunal da inquisição particular para atormentar a garota com perseguição e ameaças de prisão de familiares e até de sequestro para que ela não consiguisse realizar o aborto, segundo as denúncias feitas à polícia de Goiás. O sofrimento de uma criança violada não é suficiente para motivar a compaixão desses inquisidores.

 *Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.