Fala sobre pobreza revela diferenças no campo da fé e da política
O dia 19 de novembro é oficialmente considerado no Brasil como o Dia dos Pobres. Nessa data, o Santuário de Nossa Senhora Aparecida realizou atividades de assistência social voltadas para comunidades de baixa renda. No entanto, o que chamou atenção foi um comentário do arcebispo Dom Orlando Brandes durante uma missa. Ele disse: ‘Hoje é o dia mundial dos pobres, então vou pedir para os pobres aqui se levantarem. Vamos saudá-los com uma salva de palmas’. Posteriormente, a igreja adaptou um tradicional canto religioso com os versos: ‘os pobres serão abençoados, porque o senhor vai derramar o seu amor’. O vídeo desse momento viralizou nas redes sociais, gerando várias críticas ao líder católico. Para além do frisson típico das redes, o episódio permite levantar importantes reflexões sobre o nosso tempo.
Uma primeira observação se refere à repulsa que a categoria ‘pobreza’ gera atualmente. Décadas de discursos de coaches e da teologia da prosperidade fizeram com que a vulnerabilidade social fosse vista menos como um problema econômico ou político e mais como um defeito individual e moral. Para os coaches e influenciadores de enriquecimento, a pobreza é resultado de um mindset equivocado e de falta de esforço. Já para os devotos da teologia da prosperidade, que exerce influência além das igrejas neopentecostais, a pobreza é vista como sinal de falta de fé e, portanto, de bençãos do Senhor.
Na interpretação de Dom Orlando e de diversos setores teológicos tradicionais, a pobreza tem uma interpretação teológica positiva. Frases como ‘dos pobres será o reino dos céus’ e ‘os humilhados serão exaltados’ extrapolaram os versículos bíblicos e ganharam o imaginário social, dando um sentido positivo e abençoado aos desafortunados economicamente. Essa visão, no entanto, parece estar fora de moda.
Um segundo ponto de reflexão surge a partir do primeiro. Hoje, há uma dificuldade de comunicação de certas lideranças religiosas e políticas com as novas gerações, que vai além do uso de certos termos - Reflete uma diferença mais profunda entre cosmovisões. Setores religiosos e políticos ancorados em noções tradicionais e comunitárias encontram dificuldade de aderência em um mundo cada vez mais pautado por noções ligadas ao indivíduo, ao empreendedorismo e à graça divina individual. Não é à toa que o campo político da esquerda enfrenta dificuldades. Há pouco do que se tradicionalmente associa à esquerda entre os valores em voga nas redes, entre influenciadores e igrejas do mundo atual.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Vinicius do Valle é Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).