Estado laico, acolhimento religioso – parte 2
Quem esperava que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fosse mudar o rumo do que vem sendo aplicado como política pública de atenção à dependência química, deve ter ficado surpreso com o decreto da Presidência da República, do último dia 20 de janeiro. Lula criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, vinculado ao Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, com garantia de verba de R$ 273 milhões do orçamento de 2023, sob a rubrica de “redução da demanda de drogas”, mas que, na verdade, será destinada a essas comunidades, religiosas em sua maioria.
O novo departamento foi criado após pleito de representantes das comunidades terapêuticas e da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas do Congresso Nacional. Durante a campanha eleitoral, Lula prometeu uma política intersetorial para a dependência química. Mas, até o momento, a linha não difere muito do que foi feito no governo anterior. Na gestão de Jair Bolsonaro (PL), as comunidades terapêuticas receberam o dobro de aporte financeiro em relação aos CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) que oferecem atendimento ambulatorial e de redução de danos para usuários e dependentes químicos.
De acordo com o texto do decreto, o departamento deve “apoiar as ações de cuidado e de tratamento de usuários e dependentes de drogas, em consonância com as políticas do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social – SUAS”. Nada mais longe do que é aplicado como tratamento nas comunidades terapêuticas. Tão distante que o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS) e integrante da estrutura organizacional do Ministério da Saúde, recomendou medidas contrárias à criação do departamento. Não tenho notícias de que o pedido do CNS será aceito.
Mas qual é o problema de um atendimento religioso junto a uma população tão vulnerabilizada? Desde que comecei a pesquisar a influência do trabalho de grupos religiosos junto aos dependentes químicos da cracolândia de São Paulo em 2013, ouvi muito a pergunta de pessoas próximas e até mesmo colegas de universidade: mas não é bom? E eu respondo: é e não é. É claro que existem casos de sucesso de pessoas recuperadas pelo trabalho das comunidades terapêuticas, resultado do empenho de missionários e voluntários dedicados a esse fim. Eu mesma reporto alguns deles em minha dissertação de mestrado.
Mas, como se diz popularmente, o diabo mora nos detalhes. A despeito do acolhimento humanizado que essas comunidades terapêuticas possam promover, o atendimento não é inclusivo e deixa de fora muitas pessoas, como a população LGBTQIA+ ou pessoas não cristãs e não crentes, fato que já repeti aqui em outras colunas neste Observatório Evangélico.
Querem outros exemplos? Casais que se formam nas ruas, héteros mesmo. Como as comunidades terapêuticas não aceitam casais, essas pessoas têm que enfrentar a separação para serem atendidos. Ou mulheres que tenham filhos: elas também precisam aceitar a mesma segregação porque não há espaços que recebam mães com crianças. É bom que fique claro que famílias são um grupo que têm enorme dificuldade de acolhimento, mesmo aquelas consideradas “tradicionais”, em todo o sistema de assistência social público e não apenas nas comunidades terapêuticas.
Apesar da dedicação e empenho em ajudar as pessoas acolhidas, o que se vê no atendimento das comunidades terapêuticas é basicamente tudo ao contrário do que está previsto na Lei nº 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas: não há projeto terapêutico individual, não há liberdade de crença, as correspondências são lidas ou censuradas, a questão sexual e de gênero é tratada como pecado, a cura é relacionada à salvação. Tudo isso seguido ainda de uma longa lista de et cetera.
Mais uma vez repito aqui o que disse em outras colunas anteriores: considero pouco produtivo ficar apenas apontando problemas no atendimento feito por essas instituições religiosas. Elas não mudarão sua forma de atuação, isto está bem claro. O que me parece mais importante é questionar por que o Estado, laico por definição, insiste em investir pesadamente nesse tipo de serviço em detrimento de equipamentos sociais e de saúde que tenham atendimento multidisciplinar para o grave problema da dependência química.
A concentração de recursos em um único modelo de atendimento é outro ponto contrário à Lei nº 11.343/2006. Com o investimento alto saindo dos cofres públicos para o aumento de vagas, quem irá garantir que o dinheiro será devidamente aplicado ou que os acolhidos nas comunidades terapêuticas terão o mínimo de assistência? Eu entendo que os casos que se tornam públicos com denúncias de maus-tratos e encarceramento representam uma parcela muito pequena do universo das instituições. Mas até hoje não foi criado um protocolo de fiscalização desses espaços e o cenário pode sim se tornar perverso para os acolhidos.
A religião interfere na vida brasileira, seja política ou socialmente, desde a chegada de Cabral por aqui. Na gestão Bolsonaro essa presença foi explícita, ostensiva, exaltada. O governo estadual de Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) segue o mesmo caminho, como vimos na coluna anterior. Lula, sedento de apoio principalmente de evangélicos, tem abandonado algumas de suas bandeiras, como o trabalho de redução de danos realizado pela gestão do petista Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo (2013-2017).
Amparada por ações de governo, a atividade religiosa vai se espalhando nos atendimentos públicos, tornando praticamente impossível de distinguir o que é de fato ação social ou religiosidade ou política de atendimento. Como bem observou a antropóloga Paula Montero: “sabemos bem que no Brasil a gramática da ‘caridade’ se mantém viva como princípio de legitimação das ações públicas”. Mas, como pesquisadora sobre religião e espaço público, Montero adverte que “a religião e a política, embora sejam domínios que deveriam manter-se separados, permanecem continuamente imbricados na vida social”. Se depender dos governos brasileiros, sempre em busca de mais apoio religioso, essa ligação se estreitará cada vez mais.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo é jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Autora da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas da cracolândia de São Paulo.