Estado laico, acolhimento religioso
Tomo a liberdade de usar o mesmo título de artigo acadêmico escrito por mim em 2015 para comentar o “novo” plano de ação integrado, apresentado pela Prefeitura e Governo do Estado de São Paulo no último dia 24 de janeiro, para o atendimento aos usuários de drogas nos espaços que ficaram popularmente conhecidos como cracolândias. E uso o mesmo título por um motivo simples: de lá para cá, pouco se evoluiu na apresentação de propostas para a atenção ao problema. Ou seja, a receita é sempre a mesma: o estado brasileiro, laico por definição, facilmente incorpora os serviços prestados por instituições religiosas transformando-os em “políticas públicas” para o atendimento das populações vulneráveis.
O plano prevê a “oferta de várias linhas de cuidado para tratamento da dependência química”. No entanto, as propostas apresentadas não parecem contemplar mais as ações multidisciplinares que são essenciais para o atendimento de um problema tão complexo como a dependência de crack. O grosso do trabalho continuará a cargo das comunidades terapêuticas.
Vejamos: o Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), que é um equipamento de saúde estadual, será reformulado para “atuar como um novo hub de atendimento aos usuários de substâncias psicoativas e seus familiares”. Hub é uma palavra da moda para identificar um lugar que agrega vários serviços em um mesmo espaço. No caso do Cratod, ganhará uma casa de passagem com 40 vagas e terá atendimento do Ministério Público, Poder Judiciário e sociedade civil.
O número de vagas de internação para desintoxicação será ampliado: 246 leitos ficarão disponíveis em hospitais de referência. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, em 2022, 333 usuários de drogas foram internados em instituições de saúde para desintoxicação. O texto informa que a alta é dada ao paciente após uma média de sete a dez dias. O período já parece curto e sem um trabalho de apoio ao dependente químico na pós internação, ele simplesmente voltará a fazer uso de drogas no fluxo – a cracolândia que está acostumado a frequentar.
Em relação às comunidades terapêuticas, o investimento é visivelmente maior: serão abertas mil novas vagas, sendo 500 para início imediato. Desde 2012, o programa estadual Recomeço, de atenção à dependência química, privilegia o acolhimento em comunidades terapêuticas. Atualmente são aproximadamente 1,4 mil vagas para todo o Estado.
Segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) feito em 2017, o modelo de comunidade terapêutica mais presente no Brasil é o religioso, cristão em sua maioria, e o tratamento proposto se ancora em três pilares: trabalho (também chamado de laborterapia), disciplina e espiritualidade (orações, meditação, leitura da Bíblia, a depender de cada entidade). As vagas conveniadas no programa Recomeço não fogem à regra.
Essas instituições não possuem atendimento médico ou psicológico e a equipe de trabalho é formada, na maioria dos casos, por missionários e voluntários, que podem ser pessoas que já foram acolhidas pela entidade. Nesses espaços, a dependência química é tratada, geralmente, como pecado, cuja cura está diretamente relacionada à salvação por intercessão de Jesus Cristo e à conversão religiosa.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) faz uma crítica contundente ao modelo no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, de 2018: a base religiosa fere o caráter laico dos tratamentos em saúde, de forma a colocar em questão a possibilidade de instituições com tal perfil serem consideradas, por setores do poder público, como locais passíveis de serem incorporados às redes de cuidado e atenção para usuários de álcool e outras drogas.
As críticas do CFP parecem não encontrar apoio no “novo plano de ação” anunciado. Mesmo que no discurso o poder público venha afirmando que a dependência química deva ser tratada muldisciplinarmente, o que se vê é o fortalecimento do atendimento religioso como forma de tratamento fornecido pelas comunidades terapêuticas. Por mais dedicados que esses grupos possam ser, o que pauta as ações dos grupos religiosos são noções de pecado que não incluem acolhimento de outras crenças (ou a não crença) ou de pessoas que não se identifiquem com o conceito binário de masculino e feminino, por exemplo, deixando muita gente de fora do atendimento.
Há quase 30 anos, vários projetos foram apresentados pela Prefeitura e Governo do Estado, fazendo da cracolândia um grande laboratório. Muitas das propostas iniciais foram largadas pelo caminho ou alteradas para dar a cara do governante da vez. A única constante tem sido o acolhimento religioso. Mas, diante da situação que se vê hoje nas cracolândias espalhadas por São Paulo, fica claro que não há solução simples para problema difícil.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na Cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.