ENTRE DOIS SUPREMACISMOS: Brasil vive conflito de crenças entre proletariado cultural evangélico e elite cultural cosmopolita
Uma das mais agudas divergências entre os evangélicos e o atual governo é a assim-chamada “pauta dos costumes”. Indo direto ao ponto, a posição evangélica clássica e majoritária de afirmar o casamento monogâmico heterossexual e recusar outras formas de identidade e orientação sexual é regularmente tratada pela nossa elite cosmopolita como evidência de homotransfobia. Isso levanta uma enorme barreira de comunicação e empurra o movimento evangélico para a direita conservadora nesse e em outros assuntos. Isso não é novidade; a brasilianista Amy Erica Smith mostrou essa tendência num estudo de 2020 com o Dr. Taylor Boas.¹
Não poucos analistas denunciam nesse conflito a ascensão de um supremacismo evangélico, ligado à teoria dos “sete montes da cultura”, uma problemática concepção da missão cristã que propõe uma espécie de hegemonia cristã na sociedade, também chamada de “dominionismo”. O pesquisador Ronilso Pacheco publicou recentemente um artigo no The Intercept sobre a família Valadão, acusando o nacionalismo e a teologia do domínio na Igreja Lagoinha. A despeito da sua ominosa antipatia com o evangelicismo conservador, Pacheco está correto na crítica ao dominionismo. Eu diria que o combate a esse supremacismo evangélico é um dos maiores desafios éticos e pedagógicos do cristianismo contemporâneo.
Ao mesmo tempo, assumindo uma postura bastante confusa, uma parcela significativa do mundo jornalístico – que juntamente com o judiciário, a universidade brasileira, a indústria cultural, e a “classe criativa”,² compõe a nossa elite cosmopolita – insiste em negar a percepção de uma ameaça real à liberdade da religião evangélica, mesmo em face da progressiva e explícita criminalização do imaginário moral evangélico. Afinal de contas, a vedação da crítica moral às sexualidades antigamente marginalizadas e o policiamento da educação moral tradicional evidentemente limita a liberdade de expressão religiosa. O presidente Lula alinhou a “pauta de costumes” e a “pauta da família”, interesses dos evangélicos, com o “fascismo” no discurso de abertura no 26º Foro de São Paulo, colocando o seu governo em rota de colisão com todo esse campo religioso. Não é melhor sermos honestos sobre isso?
Em todo o caso, o julgamento da ADO26 em 2019, que equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, excepcionou a liberdade religiosa. Trata-se, a olhos vistos, de um arremedo, uma vez que a reprovação moral do racismo não poderia admitir, em sã consciência, qualquer exceção. Eu sustento – com o que alguns juristas conservadores têm concordado – que nesse julgado o STF admitiu tacitamente que há um elemento de diversidade de crença entre o campo LGBTQIAPN+ (que chamaremos, doravante, de campo “homotrans”) e o campo religioso cristão, incluindo-se aí católicos e evangélicos clássicos. Pois só uma diversidade de crença autorizaria um direito de divergência obviamente inexistente no caso do racismo.
Alguém poderia alegar, aqui, que a diversidade de crença se limita a expressões puramente religiosas, protegendo exclusivamente a convivência entre as religiões. Mas isso é pura e simplesmente falso. A razão histórica porque a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 reza, em seu artigo 18, que todo ser humano tem a liberdade de ter, de mudar e de manifestar uma “religião ou crença”, é que os soviéticos se sentiram desconfortáveis com um artigo que contemplava apenas a liberdade religiosa, e solicitaram a inclusão do termo “crença” ou “convicção”, para cobrir também suas crenças antirreligiosas. Esse fato foi registrado nas minutas da assembleia original e foi discutido pela jurista de Harvard Mary Ann Glendon em sua biografia de Eleanor Roosevelt.³
Pois bem: sustento que o conflito entre o campo homotrans e o campo religioso evangélico é um conflito de crenças e moralidades – similar ao conflito entre o cristianismo católico e o marxismo soviético – e não um conflito entre direitos. Em outros termos: o campo homotrans representa um campo de crenças e moralidades, que deveria ser tratado em pé de igualdade com o campo religioso evangélico, sendo o fato de que um representa crenças “laicas” sobre a felicidade e a experiência afetivo-sexual e o outro representa crenças “religiosas” sobre a felicidade e a experiências afetivo-sexuais absolutamente inconsequente para a discussão.
Às vezes se alega, nesse ponto, que a opressão histórica de pessoas do campo homotrans desautorizaria a cessão de qualquer espaço de poder aos antigos opressores, pois tal perpetuaria a violência. À parte do fato de que a ADO26 já admitiu essa cessão – tornando a objeção juridicamente nula – devo insistir que essa implicação não tem fundamento lógico nem histórico. A divergência moral pode gerar afastamento social, mas não implica necessariamente violência, como o demonstraria o mero experimento mental. Mas não faltam exemplos empíricos: o protestantismo já foi duramente perseguido pelo catolicismo romano, por exemplo, mas ninguém sonharia em usar as guerras da religião na Europa para negar aos católicos o direito de constituírem comunidades e instituições católicas, livres de doutrinação protestante, de divergirem publicamente sobre as crenças protestantes, e de competirem no mercado religioso por fiéis. E haveria inúmeros exemplos similares de racionalização do dissenso religioso, moral, político e estético em contextos culturais pluralistas.
Mas essa alegação falha por outra razão mais importante: o verdadeiro conflito do campo evangélico não é, na verdade, com as pessoas homotrans, e nem mesmo com o campo homotrans. Como venho sustentando em outros artigos, o campo evangélico representa uma seção do proletariado cultural nacional, que está em conflito com a classe cosmopolita, majoritariamente comprometida com o individualismo expressivo. O Brasil vive uma nova guerra de classes, similar ao conflito entre os “Somewhere” (pessoas tradicionais, comunitárias e e enraizadas) e os “Anywhere” (a elite individualista e cosmopolita), segundo os termos propostos por David Goodhart.⁴ A particularidade nacional é que por aqui os evangélicos compõem um enorme naco dos somewhere.
Ocorre, no entanto, que o campo homotrans representa uma espécie de símbolo sagrado do princípio da autenticidade, que é a bússola moral principal de pessoas da classe cosmopolita. Digamos que a defesa do campo homotrans por essa elite cultural ultrapassou os limites da defesa dos direitos e se tornou uma propaganda de seus próprios valores, rejeitados por uma parcela significativa do proletariado cultural. Sob essa perspectiva, sim, poderíamos até falar em um conflito de espiritualidades, ou entre uma religião tradicional e nos novos ritos seguidos pela nossa elite cultural. A jornalista Maria Clara Vieira levantou essa bola num artigo para a Gazeta do Povo em 2020; sendo esse o caso, não teríamos realmente um conflito de direitos, mas de crenças.
Isso nos leva ao meu ponto central: creio que é possível construir uma acomodação pluralista entre o campo homotrans e o campo evangélico conservador, a partir do princípio da diversidade de crenças e de comunidades de crença. A vontade e o direito de crer é um tema potente no imaginário evangélico; “crer ou não crer” é a grande questão; e nesse imaginário, a descrença, embora lamentada e reprovada, não é vista como objeto de violência e de eliminação, mas de tolerância, de oração e de respeito. Tal acomodação não seria uma inovação, mas uma aplicação transparente do Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Com isso, eu levantaria uma grave crítica ao uso generalizado do conceito de “homotransfobia”: na forma como ele vem sendo empregado pela elite cosmopolita e, claro, pelas esquerdas nacionais, trata-se evidentemente de uma arma de guerra cultural, que não visa em primeiro lugar o bem das pessoas homotrans, mas a hegemonia dos valores dessa classe. Nesse sentido, parece ser uma manifestação de supremacismo cultural. Convido o leitor indignado ao bom-senso: o que deveríamos pensar de movimento de ideias que proíbe falas e divergências? Militantes que desejam negar a existência de indivíduos, famílias, comunidades e instituições que divergem de suas perspectivas morais são evidentemente supremacistas, mesmo que não se sintam como tais, e não importando se tais perspectivas dizem respeito à sua sexualidade – como se divergir sobre isso fosse diferente de divergir sobre qualquer coisa. São supremacistas cândidos, inconscientes do veneno, mas ainda assim, supremacistas.
Qual seria a alternativa a esse estado de coisas? Requalificar toda a discussão a partir de uma retomada do pluralismo e do princípio da tolerância. Assumir a legitimidade da divergência de crenças e abandonar tanto as versões supremacistas da fé evangélica, quanto o inconsciente supremacismo cosmopolita. Nesse sentido eu escrevi há alguns anos uma breve série de doze teses sobre o pluralismo, que compartilho agora com os leitores, de forma revisada, como um caminho para a renovação da democracia brasileira.
Doze Teses sobre o Pluralismo
(1) O Pluralismo Social é condição necessária para a liberdade de crença, religião e expressão.
Brasileiros de todas as crenças, classes e orientações morais concordam em rejeitar tanto o Estado totalista quanto a religião totalista, aprovando a cultura do pluralismo social e a virtude da tolerância. A maioria dos cristãos abraça esses valores. De fato, a própria narrativa Cristã de Criação, Queda e Redenção, e da dignidade humana decorrente da Imago Dei dá sentido à crença de que a diversidade social resulta tanto da Vontade divina quanto das escolhas humanas, e nos faz reconhecer a impossibilidade de construir-se a sociedade perfeita antes que Deus conduza a história à sua consumação. As grandes igrejas Cristãs, nas pegadas de Agostinho de Hipona, veem no presente um ínterim histórico, ou saeculum no qual se dá o embate entre a verdade e a mentira, ínterim que não pode ser concluído por nenhum poder terreno, incluindo-se a igreja.
A perspectiva Cristã contém em si, portanto, os recursos para cumprir os princípios do Artigo 1o e do Artigo 18o da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Afirmamos assim a necessidade de promovermos uma sociedade pluralista na qual, mesmo havendo eventual dominância cultural de uma religião ou crença, tal dominância não se degrade em monopólio, e as sagradas liberdades de religião, crença, expressão permaneçam protegidas.
(2) O monopólio cultural do individualismo liberal é incompatível com o pluralismo.
Nem todo discurso de pluralismo e diversidade é genuinamente pluralista. Há quem pense, por exemplo, que em uma sociedade pluralista todos deveriam compulsoriamente adotar o individualismo e o relativismo liberal-progressista, centrado na aceitação incondicional da diferença, sendo dever do Estado promover essa agenda monopolista. Esse tipo de pluralismo atomizador oriundo da política liberal americana e de sua jurisprudência dominada por “privacy rights” tem se mostrado intolerante, pois ignora a existência de outras instâncias de experiência comunitária entre o Estado e o indivíduo, instâncias essas que compõe o tecido da sociedade civil.
A tentativa de reorganizar toda a sociedade por meio da ficção útil do "contrato social" entre indivíduos alegadamente "autônomos", ao invés de restringir o contratualismo à sua própria esfera que é o campo da justiça pública, é uma falha arquitetônica do discurso político moderno. Sua correção se encontra nos princípios do ordopluralismo: instituições sociais naturais ou não, anteriores ao Estado Moderno, tais como a família, o casamento, a igreja, a academia e as sociedades comerciais nada devem a ele e não podem ser dissolvidas em nome da vontade dos indivíduos que se unem em um contrato político, devendo ser preservadas e cultivadas para a consecução de seus fins internos. Embora não possa fundar, controlar ou alterar esses fins, o Estado pode colaborar com essas instituições visando o interesse público, conforme o artigo 19o da Carta Magna. No tocante ao pluralismo, a tarefa do Estado se restringe à preservação da liberdade de consciência e do livre trânsito dos indivíduos entre grupos e instituições que sejam divergentes entre si, conforme o artigo 5o inciso XX da Carta Magna.
(3) Diante da insuficiência da “diferença”, é preciso recuperar o princípio da tolerância.
A diversidade, per se, é um fato ambíguo, podendo ser tanto boa quanto má. No mundo dos homens, a diversidade aparece tanto como resultado da individualidade e de diferenças culturais (o “lado bom”), quanto como resultado de falhas humanas (o “lado mau”). Pois há diferenças que são fruto de nossos preconceitos, erros de interpretação e falhas morais. Diferentes grupos sociais têm diferentes visões sobre qual diferença é normal e qual é anormal, significando com isso que temos, além das diferenças, divergências. Não é plausível discutir "pluralismo" sem incluir na discussão essas divergências, e sem reconhecer que geralmente o desacordo não pode ser "corrigido" por meio de leis. O “pluralismo” que tente eliminar toda a divergência por meio de leis é um pseudopluralismo, a caminho de se tornar totalitário.
A divergência deve ser incorporada por meio do princípio da tolerância, e a tolerância é aplicável quando encontramos diferenças irreconciliáveis que resultam de crenças divergentes. A mera diferença não demanda tolerância; a diferença pode ser ignorada como mera variabilidade estética, e é geralmente fácil de absorver porque não demanda energia moral, mas a divergência não pode ser suportada senão pela tolerância. A abolição da importância das diferenças para abolir a divergência torna inútil a virtude da tolerância.
(4) Para além do indivíduo, a realidade das diferentes fés ou "crenças morais" deve ser admitida como ponto de partida político.
Uma fé moral ou crença moral é uma visão sobre quem é o homem, qual o seu papel no mundo, e o que é certo e errado para ele. Ela se articula a partir de uma visão da natureza fundamental do bem e, assim, de uma teoria de bens humanos, seja ela tácita ou explícita. Diferentes religiões envolvem diferentes crenças morais.
Mas não só as religiões sustentam crenças morais; ideologias "laicas" como o socialismo, o liberalismo, o positivismo sociológico e o pós-estruturalismo também envolvem crenças morais. O campo LGBTQIAPN+ também envolve uma um complexo de crenças morais, ligadas ao programa Queer com sua visão sobre a inexistência de "normal" e "anormal" universal. Mais amplamente, esse campo tem se mostrado profundamente dependente do grande paradigma do “Homem Psicológico” (Philip Rieff) ou “Homo Sentimentalis” (Eva Illouz) ou “Configuração moral expressivo-sentimental” (Charles Taylor), ou “individualismo expressivo” (Robert Bellah), ou o que eu mesmo chamo de “revolução afetiva”. Esse paradigma envolve a elevação da felicidade emocional e da auto-expressão afetiva como valores morais superiores, constituindo-se em uma eudemonística, e tem seu suporte político no liberalismo terapêutico ou identitário. Essa eudemonística ou doutrina de felicidade não se constitui fato científico per se nem é uma verdade logicamente necessária. É um sistema doutrinal, um projeto compartilhado, e um conjunto de crenças morais.
(5) Crenças morais integram a identidade das pessoas, e não podem ser ignoradas.
Como envolvem a autocompreensão humana, suas visões de certo e errado e suas perspectivas sobre a natureza do "bem", essas crenças naturalmente comprometem profundamente a existência dos que as sustentam. Tais crenças fundamentais sobre o bem, que organizam a escala de bens e prioridades de cada um, definem seus os hiperbens (Charles Taylor), e a jornada de cada um para atingir esses hiperbens define sua identidade.⁵ Mas o indivíduo não "escolhe" arbitrariamente sua crença moral, nem a produz, em condições normais, por meio de arrazoado científico ou filosófico rigoroso. Crenças morais emergem involuntariamente como fruto do contexto, de experiências pessoais, e da estrutura psíquica individual⁶, sendo sempre elaboradas a posteriori; e embora envolvam um elemento de juízo racional, envolvem também muitos elementos tácitos, tendo causas multifatoriais. Essas crenças se tornam parte da identidade de grupos humanos. Por isso a crença moral é uma área extremamente sensível e existencialmente carregada, e a liberdade de consciência deve ser garantida a todas as crenças morais.
(6) Crenças morais se expressam em formas institucionais de forma diferenciada.
Uma fé moral nunca é algo que existe apenas na mente de alguém. Ela existe em sua vivência total, afetando diretamente suas relações sociais. Se um grupo compartilha uma crença moral, é natural que ela molde suas instituições e práticas sociais. No caso de algumas instituições, como a empresa privada, ou o órgão público, ou a oferta de serviços de saúde, a crença moral é apenas um de seus aspectos e não seu centro definidor. Mas no caso de outras, dentre as quais poderíamos citar a família, a comunidade religiosa, as instituições educacionais, as associações e fundações sem fins lucrativos e destinadas ao serviço social e os partidos políticos, a crença moral reside em seu próprio âmago e determina a identidade da instituição. Essas instituições não podem existir sem alimentar-se de uma ou outra fé moral específica. Nesse sentido, cada uma dessas instituições tem caráter “moral” e "confessional".
(7) Todos têm o direito de sustentar e compartilhar suas crenças morais.
Esse direito inclui pessoas religiosas e pessoas não religiosas, e crenças de caráter religioso bem como não-religioso, como está previsto na DUDH de 1948, no Pacto de San José de 1969, e no Artigo 5o da Constituição Federal de 1988. Pessoas com identidades afetivo-sexuais minoritárias e transgêneros devem ter o direito de não apenas existir e expressar sua afetividade, como também o direito de defender publicamente suas crenças morais. Mas numa sociedade verdadeiramente pluralista, é preciso preservar o direito de outras comunidades articularem e preservarem suas crenças morais, independentemente da opinião da maioria.
É justo termos leis para proteger quaisquer minorias com suas crenças morais, mas é injusto fazê-lo de tal forma que outras comunidades sejam impedidas de manter e publicizar suas crenças morais. A democracia não deve se degenerar em uma "tirania da maioria".
(8) O direito a uma crença moral implica o direito a manter instituições baseadas nessa crença moral.
Há alguns anos a Senadora Marta Suplicy famosamente propôs que o direito de promover a heteronormatividade e de desencorajar a prática homossexual seja limitado aos cultos em Igrejas que assim o desejem, e propôs um “Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero” para garantir a plena aceitação da diversidade afetivo-sexual. Outros projetos de semelhante teor vem sendo promovidos no âmbito do legislativo, e a mesma agenda vem se consolidando no judiciário.
Essa agenda é inadequada por duas razões: 1) em primeiro lugar, porque a afirmação da diversidade sexual e de gênero é, ela mesma uma crença moral, uma ética afetivo-sexual específica, não podendo ser universalizada por meio de lei, sob pena de instaurar uma contradição entre os direitos afetivos contemporâneos e o princípio clássico da liberdade de pensamento, crença e religião, enunciado no artigo 18o da Declaração Universal dos Direitos Humanos; 2) em segundo lugar, a proposta mina a plena liberdade de crença, pois esta inclui os direitos de associação, expressão pública e educação religiosa familiar, segundo o artigo 12o da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos.
A questão de mérito consiste em que as "igrejas" não são as únicas instituições que tem raízes credais ou confessionais. Seria admissível eliminar o conceito de heteronormatividade em instituições e atividades nas quais a crença moral é um aspecto presente, mas secundário, criando-se assim espaços de tolerância e convivência simbiótica, em nome de bens comuns, ou em instituições nas quais a crença moral na ética afetivo-sexual Queer ou qualquer outra é aceita como princípio. Mas instituições nas quais a crença moral constitui o seu elemento fundamental e definidor, como a família, a comunidade religiosa, as associações assistenciais, empresas e organizações “de tendência”, e todas as instituições e atividades que tem caráter confessional ou credal, devem ter o direito de operar livremente segundo a sua crença moral, sem qualquer interferência ou julgamento Estatal, às exceções únicas da negação de seus fins internos ou dos direitos fundamentais de seus membros.
(9) O Estado não pode vedar a promoção de crenças morais, exceto quando elas ameaçam a dignidade da pessoa humana, ou a liberdade da sua consciência, ou o dever da tolerância mútua.
Se o Estado é invocado para privilegiar um grupo com suas crenças religiosas ou morais não-universalizáveis, e suprimir as crenças morais de outra comunidade, em caso no qual demonstravelmente não haja violação da dignidade humana e dos direitos humanos fundamentais, teríamos um caso de violência cultural perpetrada pelo Estado. Crenças morais são sensíveis compondo a identidade pessoal, grupal e institucional. Forçar a mudança em qualquer desses níveis, mesmo com apoio da maioria, é criar tensão social e violar a consciência e a identidade humana.
Há, por certo, circunstâncias em que o Estado estaria autorizado a desencorajar uma crença moral ou instituições que a sustentem: (a) o fenômeno de uma crença que negasse a dignidade humana, os direitos civis fundamentais, e o dever universal da fraternidade, segundo o artigo 1o da DUDH; (b) o fenômeno de uma crença que, legitimando a coerção física, psicológica ou moral, destruísse a capacidade de seus membros de examiná-la racionalmente e com sua consciência e abandoná-la livremente, como prevê o artigo 18o da DUDH; (c) o fenômeno de uma crença que promovesse a violência e a supressão da liberdade de outras crenças morais com suas instituições correspondentes, rejeitando o artigo 18oda DUDH, abolindo o princípio da tolerância e ameaçando com isso o próprio princípio pluralista.
À parte desses e de outros casos similares, a mera divergência de crença e mesmo a consequência da formação de comunidades separadas com valores distintos não pode ser invocada como prova de intolerância; pelo contrário, essas aglutinações sociais são inerentes ao pluralismo e ocasiões para o cultivo da tolerância. A tarefa do Estado no tocante ao pluralismo se restringe à preservação da pluralidade de crenças e instituições e do livre trânsito dos indivíduos entre essas crenças e instituições. Qualquer ampliação dessa tarefa sinaliza violência cultural e quebra da laicidade do Estado.
(10) O pluralismo se define como a convivência da pluralidade de crenças morais divergentes.
A definição de pluralismo como, por exemplo, "todos concordando em não diferenciar entre normal e anormal" constituiria violência, por excluir todas as crenças morais que não compartilham de uma forma relativista de crença típica da cultura "Queer". Semelhante definição seria ingênua e descolada da realidade prática, por não reconhecer que a divergência de crenças morais é incorrigível e independente da vontade humana. Seria também uma expressão de violência cultural, desencorajando a diversidade de crença moral e interferindo no livre trânsito entre crenças morais. Um pluralismo melhor seria reconhecer que "todos concordamos em discordar sobre o que é normal e anormal". Apenas nesse caso teríamos um pluralismo humano e realista, honesto e não-utópico.
(11) Uma Sociedade Pluralista precisa incluir espaços não-pluralistas, e não apenas mentes não-pluralistas.
Cada crença moral se expressa dentro de uma comunidade moral que compartilha dessa crença. Dentro do movimento Queer, por exemplo, a heteronormatividade é uma crença sem sentido. Da mesma forma, em comunidades cristãs clássicas, a heteronormatividade é um ponto consensual. Para se manter genuinamente pluralista, a sociedade brasileira precisará permitir espaços de dissenso, dentro dos quais as regras são diferentes, ainda que os indivíduos sejam livres para transitar entre esses espaços. Um pluralismo plausível propõe uma pluralidade de crenças morais incorporadas em uma pluralidade de instituições⁷. Essas instituições, a depender da natureza dos bens humanos que cultivam e de suas regras confessionais, se constituem em espaços relativamente iliberais⁸, nos quais é compulsória a admissão de princípios exclusivos e privados, mas não é compulsória e permanente a participação – liberdade essa protegida pela DUDH e pelo Pacto de San José, que garantem o direito de mudar de crença a qualquer tempo.
(12) Uma Sociedade efetivamente pluralista deve autorizar o pluralismo confessional para todas as instituições que têm raízes confessionais.
Toda instituição traz em si elementos de uma fé moral. Instituições públicas podem se comprometer com uma ou outra fé moral específica, dependendo do momento histórico. Igualmente, instituições que não são fundadas em uma fé moral não dependem para a sua existência de uma fé moral específica. Mas todas as instituições que se mostram intrinsecamente dependentes de uma crença moral compartilhada por seus membros devem ter o direito de manter essa crença, mesmo que tal crença seja indesejada por parte ou pela maioria da sociedade, e o Estado não deve nem promover, nem discriminar tais instituições em absoluto.
Famílias, instituições educacionais do nível básico ao nível superior, associações, fundações assistenciais, partidos políticos, comunidades e agremiações religiosas, empresas e organizações de tendência, e todas as instituições e iniciativas demonstravelmente fundadas em princípios confessionais e portadoras de uma crença moral organizadora de suas atividades devem ter seu direito confessional preservado, independentemente da origem de sua fé moral (seja ela "religiosa" ou "secular"), sendo a promoção governamental do pluralismo restrita a espaços não-confessionais e às relações interconfessionais, nos quais o princípio da tolerância deverá ser amplamente praticado, para a construção de redes de cooperação simbiótica entre os divergentes, em nome do bem comum e da paz social.
NOTAS:
¹Smith, Amy Erica; Boas, Taylor C., Religion, Sexuality Politics, and the Transformation of Latin American Electorates. Prepared for presentation at the Annual Meeting of the American Political Science Association, September 10–13, 2020.
²Florida, Richard. The Rise of the Creative Class (New York: Basic Books, 2014).
³Mary Ann Glendon, A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration of Human Rights (New York: Random House, 2002).
⁴Goodhart, David, The Road to Somewhere: The Populist Revolt and the Future of Politics (Hurst & Company, London, 2019).
⁵Charles Taylor, As Fontes Do Self: A Construção Da Identidade Moderna (São Paulo: Loyola, 2013).
⁶De resto, uma noção relativamente bem estabelecida no campo da epistemologia da crença. Cf. René van Woudenberg, “Belief is Involuntary. The Evidence of Thought Experiments and Empirical Psychology”, in Discipline Filosofiche. Revista Semestrale (2013), 111-131
⁷Dias, Juliana Bolzan Sebe, “O Pluralismo de Princípios e a Diversidade de Visões de Mundo na Esfera Pública”. Tabulae – Revista de Philosophia, Ano 16 - n. 32 - jan-jun de 2022
⁸Chaplin, Jonathan. ‘Rejecting Neutrality, Respecting Diversity: From “Liberal Pluralism” to “Christian Pluralism,”’. Christian Scholar’s Review 35/2, Winter, 2006.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Guilherme de Carvalho Teólogo formado pela Escola Superior de Teologia do Mackenzie, mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e doutorando em teologia pela Faculdade Teológica de Kampen/Utrecht. Foi professor de teologia por vários anos e trabalha hoje com divulgação e formação em teologia pública. É atualmente pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, diretor de L’Abri Fellowship Brasil, presidente da Cristãos na Ciência (ABC2) e colunista da Gazeta do Povo.