Em casa ou nas igrejas, mulheres agredidas continuam sem justiça

Em casa ou nas igrejas, mulheres agredidas continuam sem justiça

Prestes a completar 17 anos desde que foi sancionada, a lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, prevê que todo caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime que deve ser julgado pelos Juizados Especializados de Violência Contra a Mulher. Apesar dos avanços trazidos pela legislação em termos de acesso ao atendimento policial e jurídico, as mulheres continuam sem justiça para as violências sofridas. É o que mostra pesquisa feita no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por quatro pesquisadores acadêmicos do Direito*. Segundo o levantamento, o ano de 2021 aponta para quase 2 milhões de processos parados. Este é um dos dados que demonstra que 90% dos casos denunciados ficam sem qualquer análise ou julgamento no Sistema Nacional de Justiça.

Desde 2018, o site do CNJ informa os números sobre a atuação dos Juizados Especializados de Violência Contra a Mulher. “Os casos listados no site são os de lesão corporal e ameaça. Na pesquisa, vimos que dentre 630.948 novos processos e quase 2 milhões parados, somente 333.090 foram sentenciados. No entanto, as informações sequer apresentam qual foi o tipo de sentença. Não sabemos se foi condenatória ou se foi aplicada a suspensão da pena em função da prescrição (os crimes de lesão corporal e ameaça prescrevem em oito e quatro anos, respectivamente). Na prática, o que vemos é que as mulheres agredidas continuam sem acesso à justiça, recebendo a impunidade como resposta do sistema de justiça brasileiro quando buscam ajuda jurídica”, comenta Artenira Silva, uma das líderes da pesquisa.

Apesar do alto número de casos, os pesquisadores acreditam haver uma subnotificação dos crimes de violência contra a mulher. O Brasil possui apenas 145 Juizados Especializados de Violência Contra a Mulher. Nas cidades onde não existem, os casos são julgados pelas varas criminais. “Num país continental como o nosso, o número de juizados especializados representa apenas 1,7% do total de varas brasileiras. A mulher agredida já tem dificuldade em relatar a violência em um local que, em tese, está preparado para isso, o que dirá em uma vara criminal comum”, pondera Artenira.

A preocupação da pesquisadora é confirmada pela pesquisa "Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil", publicada no último dia 2 de março. Além de apontar que todas as formas de violência contra a mulher aumentaram em 2022, o estudo mostra que a maioria não pede ajuda. A falta de confiança na polícia ou a dificuldade que as vítimas têm em provar que sofreram a agressão são os principais motivos.

Infelizmente, a mesma situação vem se reproduzindo dentro das igrejas. Assim, para muitas mulheres, a igreja também se transforma em um ambiente onde a dor impera, como verificou a pesquisadora Valéria Vilhena, da rede Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG). Valéria aborda o meio evangélico e protestante em suas pesquisas, mas é fato que as mulheres não encontram amparo nas diversas denominações cristãs.

Mesmo que as palavras do Cristo tenham sido de caridade para grupos minoritários e excluídos – como escravos, mulheres e leprosos, por exemplo – o cristianismo contribuiu em muito para a opressão feminina. Foi o apóstolo Paulo um dos principais disseminadores da subordinação da mulher ao homem ao escrever que “o homem não foi tirado da mulher e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher e sim esta para o homem" (1 Coríntios 11: 8-9).

No Brasil, a igreja sempre exerceu controle sobre as mulheres desde os tempos coloniais e o catolicismo foi amplamente usado como uma forma de domínio sobre as mulheres. As palavras do apóstolo Paulo na carta aos Efésios era a lei: a “mulher deve se sujeitar ao seu marido” já que ele é “a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja” (Efésios 5: 23). E assim como a ideia de que o representante de Cristo no lar é o homem segue firme na igreja católica, o mesmo acontece nas igrejas evangélicas. E com o crescimento no país dessas denominações, a força masculina ganha cada vez mais espaço.

As mulheres são a maioria nas igrejas, mas quando agredidas quase nunca recebem o apoio necessário. Ao contrário. Muitas vezes são aconselhadas a orar e escutam que buscar ajuda externa é um sinal de fraqueza ou falta de fé. A essência do ensinamento do Cristo é o amor. No entanto, na busca por amparo, para a cura de suas dores, as mulheres se deparam com um universo de julgamento e sentem que Deus se torna cada vez mais inalcançável.

Valéria aponta que a constituição da família conforme um padrão divino, segundo a vontade de Deus entre os evangélicos, é uma constituição desigual, um espaço de hierarquia e subordinação e, portanto, pode abarcar a violência doméstica. “É pernicioso que igrejas deem respaldo, em nome de Deus, ou da família, a quaisquer tipos de violência contra as mulheres silenciando-as em suas igrejas ou respaldando, protegendo, acobertando os homens que as violentam”, diz.

A pesquisadora acrescenta: continuar a expressar uma fé cristã sexista, autoritária elitista e moralista não está cooperando para a erradicação da violência contra a mulher. É preciso de fato que as igrejas se envolvam com a questão e enfrentem suas causas. A violência contra mulheres e meninas é uma grave violação dos direitos humanos. Há impactos negativos pessoais, familiares e sociais, que vão desde consequências físicas, sexuais e mentais para mulheres e meninas, incluindo a morte, até afetar negativamente a sociedade como um todo.

Para Valéria, seria um sinal de maturidade da liderança das igrejas reconhecer a violência sofrida pelas mulheres. “Nossas lideranças precisam reconhecer seus limites e trabalhar em um esforço conjunto para a erradicação da violência contra as mulheres. Talvez uma saída seria o caminho do reconhecimento de que nós seres humanos evangélicos ou não, já fomos capazes e seguimos capazes das maiores barbáries, inclusive em nome de Deus”.

Como uma extensão da sociedade, as igrejas reproduzem comportamentos. De acordo com a pesquisadora Artenira, para o poder judiciário brasileiro, a violação de direitos humanos das mulheres continua sendo um conflito sem importância, mesmo considerando que as ações que chegam a juízo, em geral são de ameaça de morte e de lesão corporal. Ao buscar ajuda nas igrejas, a liderança trata a violência como falta de oração e fé por parte das mulheres agredidas. Essas respostas inadequadas contribuem para o empoderamento do agressor e o resultado, infelizmente, é a manutenção da impunidade dos crimes praticados contra as mulheres.


(*) Breve currículo dos pesquisadores responsáveis pelo levantamento no CNJ

Professora doutora Artenira Silva: professora e pesquisadora em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão, pós-doutora em psicologia e pós-doutora em Direitos Humanos.

Cláudio Guida: advogado criminalista, psicólogo e historiador. Mestre em Educação e mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão.

Professora doutora Patrícia Bertolin: professora de Teorias Feministas aplicadas ao Direito e Pesquisadora na Universidade Presbiteriana do Mackenzie (São Paulo).

Professor Flávio Bastos de Leão: professor e pesquisador em Direitos Humanos e em Direito Internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo). Advogado em Cortes Internacionais e presidente da Frente Ampla Democrática de Direitos Humanos (FADDH).

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na Cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.