Degredadas filhas de Eva
Mulheres dependentes químicas e em situação de rua são classificadas pelo viés moral e não como pessoas doentes e que precisam de atendimento adequado. São taxadas de egoístas, negligentes e sofrem muito mais com os estigmas e preconceitos inerentes à dependência química.
Tomo emprestado o trecho da oração católica Salve Rainha, colocando-a na concordância nominal feminina, para tratar aqui das dificuldades enfrentadas pelas mulheres dependentes químicas na busca por atendimento público. Mulheres cisgênero, claro. Porque para as mulheres trans a situação se complica mais ainda, como veremos adiante.
Dificuldades essas que relatei em minha pesquisa de doutorado. Mulheres dependentes químicas e em situação de rua são classificadas pelo viés moral e não como pessoas doentes e que precisam de atendimento adequado. São taxadas de egoístas, negligentes e sofrem muito mais com os estigmas e preconceitos inerentes à dependência química. Se forem mães, pior ainda: tornam-se criaturas abjetas por terem deixado de lado a santidade da maternidade e do cuidado da família enquanto se drogam nas ruas. Como atendimento público encontram serviços cada vez mais ancorados em organizações sociais religiosas e, assim, a mão que acolhe é também aquela que mais julga.
Esse fato chamou a atenção da equipe técnica da COED (Coordenadoria de Políticas sobre Drogas) do Estado de São Paulo. A COED avalia que mulheres abandonam com maior frequência o acolhimento terapêutico e que também sofrem mais com as recaídas, além de notar que a abordagem e o atendimento estavam sendo executados na lógica de acolhimento terapêutico masculino. E em espaços onde o masculino impera, quase nada é pensado para as mulheres. Diante disso, a equipe sugeriu uma série de mudanças no Programa Recomeço, propostas que se encontram no edital que está em vigor: implantação de Protocolo de Intervenção em Casos de Traumas e Transtornos de Estresses Pós-Traumáticos, visto que essas mulheres vêm de um contexto de violência doméstica e intrafamiliar, e acolhimento em conjunto com os filhos com até 2 anos de idade, entre outras sugestões.
Nada disso foi mencionado na inauguração oficial do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, novo nome dado para o serviço que já vinha sendo oferecido no casarão histórico localizado na Rua Prates, no bairro do Bom Retiro, região central da Capital paulista. O local foi repaginado para ser “mais acolhedor”, segundo os textos oficiais do Governo do Estado, e o layout lembra quatro estações do Metrô que receberam o nome de Amor, Luz, Paz e Liberdade.
No evento, o vice-governador Felicio Ramuth (PSD), que coordena o plano de ação para a cracolândia, falou que “agora São Paulo tem uma Política Estadual sobre Drogas” (na verdade a lei é de 2019, mas foi regulamentada e publicada no Diário Oficial, no dia 11 de abril), que os serviços prestados vão respeitar a singularidade de cada pessoa que busca atendimento e que a interação com o trabalho missionário, das comunidades terapêuticas e com os grupos de apoio religiosos continuará. Mais do mesmo de sempre.
A antiga equipe de servidores estaduais que atendia no espaço foi trocada por colaboradores da organização social Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, cujo diretor-presidente é o psiquiatra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Ronaldo Laranjeira. Defensor do modelo de comunidade terapêutica, Laranjeira já foi o coordenador do Recomeço na gestão do ex-governador e atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB).
A direção do Hub ficará a cargo do psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior, que chefiou a Secretaria Nacional de Cuidado e Prevenção às Drogas no governo de Jair Bolsonaro (PL). O médico já ocupou outros cargos em Brasília no governo de Michel Temer (MDB), além de ter sido diretor do Hospital Psiquiátrico Cantareira, na Zona Norte da Capital paulista, entre 2016 e 2017. O novo diretor não apenas é grande defensor do modelo de comunidade terapêutica religiosa como já defendeu que “internar usuários de drogas à força é a única solução possível”.
O direcionamento dos esforços para um único modelo de atendimento que prega a abstinência e a religiosidade vem sendo aplicado desde 2013 no Estado de São Paulo e replicado pela capital, com exceção do período em que Fernando Haddad (PT) assumiu a Prefeitura (2013-2016). De lá para cá, os equipamentos municipais de atendimento que existiam no entorno da maior cena de uso de crack foram sendo desmantelados e transferidos para outras regiões da cidade, distantes, pelo menos, dois quilômetros do Centro.
Atualmente, quem gerencia o Recomeço é a organização social Samaritano São Francisco de Assis, que venceu o chamamento público de 2022. Mas o mesmo edital que traz a análise da equipe técnica da COED sobre os problemas no atendimento das mulheres, reforça a condição de degredo das dependentes químicas. O número de vagas totais em comunidades terapêuticas e repúblicas oferecidas pelas organizações sociais religiosas será de 1432, sendo que apenas 200 delas oferecidas para o público feminino. É bom lembrar que essas vagas são para todo o Estado de São Paulo e não apenas para a capital.
Tamanha discrepância não acompanha as preocupações da equipe da COED nem os percentuais do último Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (LECUCA), feito pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa foi realizada já sob o impacto do espalhamento dos usuários de drogas pela cidade após a ação da Prefeitura para liberação da Praça Princesa Isabel, em maio de 2021. De acordo com o estudo, o público médio da cracolândia é de 934 pessoas, formado por 73,8% de homens, 22,5% de mulheres e 3,73% de transgêneros.
É importante acrescentar que o próprio relatório da pesquisa aponta que esse número, dependendo do horário, pode quase dobrar, principalmente à noite. E foi justamente nesse período que as equipes de pesquisa não foram para as ruas, por conta da falta de segurança, o que aponta para a subestimação dos públicos, principalmente o feminino e trans nos locais onde acontecem a concentração dos fluxos de uso de drogas.
Mesmo com números subestimados, a oferta de vagas para as mulheres é menor percentualmente do que os dados de público apresentados pelo LECUCA. E o que me parece mais grave: não há previsão de acolhimento para a comunidade LGBTQIA+ no edital atual do programa Recomeço. E o que não se nomeia, não existe.
Grupos religiosos têm dificuldades em compreender as performances de gênero que fujam do conceito binário de masculino e feminino. Mas a não previsão de atendimento desse público no edital do principal programa governamental aos dependentes químicos é a prova de como a política de atendimento continua seguindo conceitos apregoados pela moral cristã vigente. E já sabemos que esses conceitos podem ser estigmatizantes e excludentes, reforçando o degredo das mulheres. De todas elas.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte do GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo), ambos grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.